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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

sábado, 29 de setembro de 2018

Crônica - Céu de Saigon


Emílio Santiago morreu cedo demais; ainda tinha muita música bonita para cantar. Quando em vida, não prestei muita atenção ao seu trabalho; depois de morto, aprendi a gostar do seu jeito todo próprio de interpretar, dando cara nova para músicas já consagradas. Tinha vozeirão bonito e afinado. Creio que ele estava particularmente inspirado quando gravou Saigon, de Cláudio Cartier e Paulo César Feital; foi a música que consagrou esse grande artista. Toca Saigon!
Na letra, um casal briga e se separa em plena Saigon; como despedida, ela deixa uma mensagem no espelho, escrita com batom. A Saigon que marcou a minha infância, antiga capital do Vietnã do Sul, agora Ho Chi Min, homenageando o líder da guerrilha vietcongue, das poucas guerrilhas que venceram os ianques. É clássica a cena dos americanos fugindo, em improvisados helicópteros de combate. Fugiam às pressas, para não serem massacrados pelos norte-vietnamitas, que vinham em seus calcanhares. Helicópteros superlotados de americanos, soldados, funcionários da representação, jornalistas e asseclas, saindo da embaixada em polvorosa. Imagens que ainda estão vivas e que rodam pela minha memória. Essa é a minha Saigon.
Também está viva em minha memória a fotografia que emocionou o mundo: uma garotinha, na mocidade identificada como Kim Phuc, correndo, desesperada, queimada e nua em sua magrém. Atrás dela, soldados americanos fortemente armados; no fundo, bombas explodindo gente assustada e indefesa. Uma nuvem negra de fumaça, espessa e ameaçadora, escurecia o dia.  
A Saigon que povoou meus sonhos e meus pesadelos de moleque; muitas toneladas de bombas explodiram, muitas toneladas de napalm caíram dos aviões americanos – as nuvens do pó químico, amarelo, desfolhavam as árvores e atingiam os guerrilheiros escondidos nas selvas vietnamitas. Nuvens pegajosas que grudavam na pele e incendiavam as pessoas, largamente utilizada contra os guerrilheiros.
As revistas e jornais do final 1960 davam ampla cobertura a essa guerra violenta, a esse insano e acabado retrato da violência imperialista; guerra imortalizada em Bom dia Vietnã e em Apocalipse Now, filmes imperdíveis. Conflito também imortalizado na revista Realidade, que estampou em uma das capas a foto do repórter José Hamilton Ribeiro tombando ao chão com uma perna estraçalhada pela explosão de uma mina. Imagem doída. Inesquecível.
Meu pai, ouvinte contumaz da Voz do Brasil, se informava sobre o conflito e falava que aquilo se transformaria na Terceira Guerra Mundial: não vai acabar nunca, cada vez se alastra mais.
E meu pai dizia isso justamente quando eu estava indo para a cama, na minha hora de dormir; o quarto, que eu dividia com meus irmãos, ficava encostado na cozinha, onde meus pais ouviam rádio e conversavam amenidades na era pré-televisão. Casa simples, sem forro, paredes vazadas, eu morria de medo daquelas conversas, tinha longas insônias.
Eu sonhava acordado para não dormir; no pouco que dormia, do céu escuro vinham bombas em forma de bolhas de sabão, grandes, transparentes, brilhantes, silenciosas. Desciam e volteavam vagarosas ao sabor da brisa gelada que vazava pelas frestas do telhado; por vezes pairavam ameaçadoras sobre minha cabeça, me espreitando pela madrugada afora.
Toda vez, quando anoitecia, eu olhava para o céu e não via o que era bom; não via as estrelas, via apenas a escuridão; é assim que ainda penso no céu de Saigon. 
Saigon sempre me soou trágica, misto de pavor e caos. Emílio Santiago ma redimiu em parte, deu a ela outras cores e outros tons; gosto de ouvi-la. Mesmo que a cidade ainda me pareça sombria, essa música me passa alguma nostalgia amorosa; retrata uma vez mais um conflito, um embate, mas de palavras escritas em batom, sem mortes e sem bombas.





(Foto: Raul Frezza)

4 comentários:

  1. Professor, tenho que parabeniza-lo, sua escrita me levou a esta triste guerra.
    Neste fim onde o senhor retrata suas noites mal dormidas onde o vento entra entre as frestas, me senti com frio. Estou ansioso pela próxima postagem. Quero enfatizar que esta crônica está muito bem escrita, pois me transportou para época de sua juventude.
    Que todo sangue derramado em Saigon fique só na história, e que toda música boa como Saigon fique na história para quê acalante nossos ouvidos.

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  2. Pois é. Fotos e fatos que ficaram na memoria. A da menina citada foi objeto de uma reportagem num dos jornais do último fim de semana. Essa foto deveria servir para acabar com todas as guerras do mundo, fechar as fábricas de armas de todos os tipos e trazer a paz definitiva. Mas o sacrifício não adiantou. Hoje, o que mais ouvimos é que todos devem andar armados... E, pior, muita gente comprando a idéia e tentando nos convencer que esse é o caminho.

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  3. Belo texto. Meus cumprimentos ao Raul pela iniciativa e a você por aderir. A cena da debandada dos gigantes agressores de um país pequeno e pobre, mas de gente verdadeiramente grande ficou gravada na minha memória. Cheguei a imaginar que o império, enfim, iria tomar juízo. Lamentavelmente, não aprenderam a lição.

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