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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Crônica - A testemunha e a inspeção judicial


Foi com surpresa que vimos passar, pelos corredores do fórum, um séquito inusitado: juiz, oficial de justiça, escrevente, advogados, partes e testemunhas. O juiz vinha à frente: baixinho, com óculos de hastes e aros grossos, vestindo um elegante e bem cortado terno azul marinho, sorrindo como sempre. Era um cidadão simpático, muito querido no fórum. Gostava de se reunir com os servidores, à noite, para um churrasco. Invariavelmente, tomava umas cachaças; as amarelinhas, da terra e envelhecidas no carvalho, eram as de sua preferência. Recatado e cioso do cargo, jamais bebia em público e nem se embriagava; mas gostava da dita cuja.

Atrás do juiz, respeitosamente, vinham os outros, todos com ar de preocupação. Era quase fim do expediente; céu aberto, dia ensolarado e quente.
Só depois é que ficamos sabendo do caso. Uma última testemunha, que era ouvida num processo sobre um acidente de trânsito, dava a sua versão sobre os fatos. Lá pelas tantas, o juiz suspeitou que ela estivesse mentindo, tudo porque as suas afirmativas divergiam daquilo que vinha sendo constatado até então.  Cidade pequena, o acidente havia ocorrido numa esquina próxima do fórum, quer dizer, a meio caminho entre o fórum e a casa do juiz.
Essa testemunha era um mecânico conhecido na cidade, também baixinho, só que um pouco mais atarracado de corpo, sempre com o uniforme, também azul, da concessionária de veículos em que trabalhava. Tinha bigodes lustrosos, bem cheios, que se destacavam na cara morena. Mantinha-se firme, não mudava o depoimento e garantia que só falava a verdade.
De repente, o juiz se deu conta de que conhecia o sujeito:
- Espera aí! Você não mora aqui perto, na rua de trás?
- Sim, respondeu a testemunha, moro perto da esquina do acidente; minha casa fica um pouco para cima.
Prosseguiu o juiz, agora tendo certeza de quem se tratava:
- Não é você que fica sentado, no alpendre, depois das cinco da tarde?
- Sim, seu juiz, sou eu mesmo.
- Então sei quem você, eu vejo você ali todos os dias. Você fica sentando num banquinho, olhando a rua, não é?
- Isso mesmo. Eu também vejo o senhor, seu juiz. O senhor passa na frente da minha casa todas as tardes, depois que sai aqui do fórum. Eu vejo o senhor subindo de carro.
Essa era a rotina deles: vizinhos entre si, juiz e testemunha se viam todas as tardes, um sentado no banquinho, descansando do serviço na oficina; o outro, voltando para a sua casa, logo acima, para descansar das lides forenses.
Tendo essa confirmação, o juiz foi resoluto:
- Pois então está mentindo mesmo! Porque, entre a sua casa e a esquina do acidente, existe uma árvore grande, frondosa, que impede a sua visão. Dali você não enxerga a esquina, dali você não veria o acidente. Está mentindo!
- É, sim, seu juiz, tem árvore, sim, mas eu vejo por debaixo dela; dá para ver a esquina, sim. Não estou mentindo, não – justificou a testemunha, já um tanto trêmula e temendo pelo pior.
- Vê não! Tem árvore na frente, não tem como ver. Vou mandar prender você por falso testemunho, agora mesmo.
Vai não vai, diz que diz, protestos dos advogados, a testemunha jurava que não mentia. O juiz decidiu, em voz alta:
- Depoimento interrompido, audiência interrompida! Inspeção judicial agora mesmo! Vamos todos para a casa da testemunha. Vou sentar naquele banquinho e olhar para a esquina: se a árvore me atrapalhar a visão, eu mando prender esse cidadão!
E, dirigindo-se ao mecânico:
- O senhor é quem sabe: ainda dá tempo de mudar sua versão.
A testemunha não voltou atrás. Foram todos para a casa dele; uma fila indiana nunca vista, que surpreendeu os funcionários do fórum e os moradores da rua. O juiz, enfim, teria a oportunidade de vistoriar o local e concluir sobre o real campo de visão do mecânico.
Pois bem; sentado no banquinho, empertigado, o juiz não conseguia ver a esquina. A árvore atrapalhava. Furioso, quase gritou:
- Tô falando! Daqui não dá para ver nada, a testemunha está mentindo.
O mecânico, tremendo de medo, correu para o banquinho, rápido, sentou-se bem do lado do juiz, e disse, com voz um tanto insegura:
- Mas acontece, seu juiz, que o senhor tem que sentar como eu sento, olha: tem que ficar assim, curvado, com a espinha bem dobrada, com o cotovelo apoiado no joelho e a mão segurando o queixo. É assim que eu fico, doutor. Fico olhando o movimento por debaixo da árvore e tomando uma amarelinha, seu juiz. Vejo tudo o que se passa lá embaixo, na esquina. Olha bem para o senhor ver.
O juiz, então, curvou-se como indicado, dobrou a espinha, fincou o cotovelo na altura do joelho, a mão direita segurando o queixo. Virou-se para os lados de baixo, olhando a esquina – e viu tudo; o cruzamento aparecia nítido sob a ramagem verde.
Vexado, respirando fundo, o juiz concluiu, resignado e balançando a cabeça:
- É ... a testemunha tem razão; assim, dobrado, dá para ver mesmo. Vamos embora, todo mundo de volta para continuar a audiência lá no fórum.
Foi essa a primeira vez que eu, ainda moleque, faxineiro de cartório, ouvi falar em inspeção judicial, que é feita pelo magistrado no local dos fatos. E naquela tarde, embora a ocasião fosse propícia, nem juiz e nem testemunha puderam tomar uma amarelinha.
Tiveram que voltar para continuação da audiência, que se estendeu até a noitinha. E , que bom, ninguém foi preso por falso testemunho.

19 comentários:

  1. Boa. Se buscar pela memória acho que identifico os personagens... kkkk

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    1. Claro que identifica. Personagens do nosso cotidiano, antigo cotidiano. Abraços, Céio.

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  2. Bela,recordação! E você Ezio, ainda moleque nem imaginava que no futuro ia deixar de ser faixineiro de cartório para ser um brilhante advogado e mestre.

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    1. Nada de brilhante, Lurdes, mas é uma realidade que não foi sonhada. Abraços.

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  3. Gostei professor. Lembro do senhor contar está crônica em sala .

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    1. Valeu, André. Um forte abraço. Apareça para o Xadrez Legal.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Luis Gustavo Pereira Morás3 de outubro de 2018 às 13:48

    Excelente! Ansioso pelas próximas crônicas

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  6. Boa, boa mesmo. Tão boa quanto à amarelinha!

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  7. Vanessa Gavião Bastos4 de outubro de 2018 às 11:49

    Maravilhoso como sempre, Professor Ézio. O Sr. é sempre inspiração para todos nós. Bom ter agora um espaço para aprender (ainda mais) com suas ideias e experiências. Serei presença frequente por aqui. Abraços

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    1. Obrigado, Vanessa; todos nós juntos vamos aprendendo uns com os outros. Abração.

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  8. Marianna Vilela Braz4 de outubro de 2018 às 18:29

    Professor Ézio, que honra ter recebido o convite para acompanhar esse trabalho magnífico que o senhor esta compartilhando conosco. Já estou ansiosa para as próximas. Um abraço.

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    1. Obrigado, Marianna, espero que goste. Sim, mais alguns dias e teremos nova crônica. Um forte abraço.

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  9. muito bom professor hahaha fiquei curiosa com o final e vim conferir.

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    1. Muito agradecido, Mariana Cristina. Espero que tenha gostado; é um tema que sempre levo para a sala de aula, pelo caráter didático e inusitado do acontecimento. Abraços.

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