Foi com surpresa que vimos passar, pelos corredores do
fórum, um séquito inusitado: juiz, oficial de justiça, escrevente, advogados,
partes e testemunhas. O juiz vinha à frente: baixinho, com óculos de hastes e
aros grossos, vestindo um elegante e bem cortado terno azul marinho, sorrindo
como sempre. Era um cidadão simpático, muito querido no fórum. Gostava de se
reunir com os servidores, à noite, para um churrasco. Invariavelmente, tomava
umas cachaças; as amarelinhas, da terra e envelhecidas no carvalho, eram as de
sua preferência. Recatado e cioso do cargo, jamais bebia em público e nem se
embriagava; mas gostava da dita cuja.
Atrás do juiz, respeitosamente, vinham os outros,
todos com ar de preocupação. Era quase fim do expediente; céu aberto, dia
ensolarado e quente.
Só depois é que ficamos sabendo do caso. Uma última
testemunha, que era ouvida num processo sobre um acidente de trânsito, dava a
sua versão sobre os fatos. Lá pelas tantas, o juiz suspeitou que ela estivesse
mentindo, tudo porque as suas afirmativas divergiam daquilo que vinha sendo
constatado até então. Cidade pequena, o
acidente havia ocorrido numa esquina próxima do fórum, quer dizer, a meio
caminho entre o fórum e a casa do juiz.
Essa testemunha era um mecânico conhecido na cidade, também
baixinho, só que um pouco mais atarracado de corpo, sempre com o uniforme,
também azul, da concessionária de veículos em que trabalhava. Tinha bigodes
lustrosos, bem cheios, que se destacavam na cara morena. Mantinha-se firme, não
mudava o depoimento e garantia que só falava a verdade.
De repente, o juiz se deu conta de que conhecia o sujeito:
- Espera aí! Você não mora aqui perto, na rua de trás?
- Sim, respondeu a testemunha, moro perto da esquina do
acidente; minha casa fica um pouco para cima.
Prosseguiu o juiz, agora tendo certeza de quem se
tratava:
- Não é você que fica sentado, no alpendre, depois das
cinco da tarde?
- Sim, seu juiz, sou eu mesmo.
- Então sei quem você, eu vejo você ali todos os dias.
Você fica sentando num banquinho, olhando a rua, não é?
- Isso mesmo. Eu também vejo o senhor, seu juiz. O
senhor passa na frente da minha casa todas as tardes, depois que sai aqui do
fórum. Eu vejo o senhor subindo de carro.
Essa era a rotina deles: vizinhos entre si, juiz e
testemunha se viam todas as tardes, um sentado no banquinho, descansando do
serviço na oficina; o outro, voltando para a sua casa, logo acima, para
descansar das lides forenses.
Tendo essa confirmação, o juiz foi resoluto:
- Pois então está mentindo mesmo! Porque, entre a sua
casa e a esquina do acidente, existe uma árvore grande, frondosa, que impede a
sua visão. Dali você não enxerga a esquina, dali você não veria o acidente.
Está mentindo!
- É, sim, seu juiz, tem árvore, sim, mas eu vejo por
debaixo dela; dá para ver a esquina, sim. Não estou mentindo, não – justificou
a testemunha, já um tanto trêmula e temendo pelo pior.
- Vê não! Tem árvore na frente, não tem como ver. Vou mandar
prender você por falso testemunho, agora mesmo.
Vai não vai, diz que diz, protestos dos advogados, a
testemunha jurava que não mentia. O juiz decidiu, em voz alta:
- Depoimento interrompido, audiência interrompida! Inspeção
judicial agora mesmo! Vamos todos para a casa da testemunha. Vou sentar naquele
banquinho e olhar para a esquina: se a árvore me atrapalhar a visão, eu mando
prender esse cidadão!
E, dirigindo-se ao mecânico:
- O senhor é quem sabe: ainda dá tempo de mudar sua
versão.
A testemunha não voltou atrás. Foram todos para a casa
dele; uma fila indiana nunca vista, que surpreendeu os funcionários do fórum e os
moradores da rua. O juiz, enfim, teria a oportunidade de vistoriar o local e
concluir sobre o real campo de visão do mecânico.
Pois bem; sentado no banquinho, empertigado, o juiz
não conseguia ver a esquina. A árvore atrapalhava. Furioso, quase gritou:
- Tô falando! Daqui não dá para ver nada, a testemunha
está mentindo.
O mecânico, tremendo de medo, correu para o banquinho,
rápido, sentou-se bem do lado do juiz, e disse, com voz um tanto insegura:
- Mas acontece, seu juiz, que o senhor tem que sentar como
eu sento, olha: tem que ficar assim, curvado, com a espinha bem dobrada, com o
cotovelo apoiado no joelho e a mão segurando o queixo. É assim que eu fico,
doutor. Fico olhando o movimento por debaixo da árvore e tomando uma amarelinha,
seu juiz. Vejo tudo o que se passa lá embaixo, na esquina. Olha bem para o
senhor ver.
O juiz, então, curvou-se como indicado, dobrou a
espinha, fincou o cotovelo na altura do joelho, a mão direita segurando o
queixo. Virou-se para os lados de baixo, olhando a esquina – e viu tudo; o
cruzamento aparecia nítido sob a ramagem verde.
Vexado, respirando fundo, o juiz concluiu, resignado e
balançando a cabeça:
- É ... a testemunha tem razão; assim, dobrado, dá
para ver mesmo. Vamos embora, todo mundo de volta para continuar a audiência lá
no fórum.
Foi essa a primeira vez que eu, ainda moleque,
faxineiro de cartório, ouvi falar em inspeção judicial, que é feita pelo
magistrado no local dos fatos. E naquela tarde, embora a ocasião fosse
propícia, nem juiz e nem testemunha puderam tomar uma amarelinha.
Tiveram que voltar para continuação da audiência, que
se estendeu até a noitinha. E , que bom, ninguém foi preso por falso
testemunho.
Boa. Se buscar pela memória acho que identifico os personagens... kkkk
ResponderExcluirClaro que identifica. Personagens do nosso cotidiano, antigo cotidiano. Abraços, Céio.
ExcluirBela,recordação! E você Ezio, ainda moleque nem imaginava que no futuro ia deixar de ser faixineiro de cartório para ser um brilhante advogado e mestre.
ResponderExcluirNada de brilhante, Lurdes, mas é uma realidade que não foi sonhada. Abraços.
ExcluirGostei professor. Lembro do senhor contar está crônica em sala .
ResponderExcluirValeu, André. Um forte abraço. Apareça para o Xadrez Legal.
ExcluirGrande Ézio...rs...Valeu!!
ResponderExcluirAbraços
Grande Everton. Abração, meu caro.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirExcelente! Ansioso pelas próximas crônicas
ResponderExcluirObrigado, Luís Gustavo, um grande abraço.
ExcluirBoa, boa mesmo. Tão boa quanto à amarelinha!
ResponderExcluirAcho que a amarelinha é melhor ainda. Abração.
ExcluirMaravilhoso como sempre, Professor Ézio. O Sr. é sempre inspiração para todos nós. Bom ter agora um espaço para aprender (ainda mais) com suas ideias e experiências. Serei presença frequente por aqui. Abraços
ResponderExcluirObrigado, Vanessa; todos nós juntos vamos aprendendo uns com os outros. Abração.
ExcluirProfessor Ézio, que honra ter recebido o convite para acompanhar esse trabalho magnífico que o senhor esta compartilhando conosco. Já estou ansiosa para as próximas. Um abraço.
ResponderExcluirObrigado, Marianna, espero que goste. Sim, mais alguns dias e teremos nova crônica. Um forte abraço.
Excluirmuito bom professor hahaha fiquei curiosa com o final e vim conferir.
ResponderExcluirMuito agradecido, Mariana Cristina. Espero que tenha gostado; é um tema que sempre levo para a sala de aula, pelo caráter didático e inusitado do acontecimento. Abraços.
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