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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

sábado, 13 de junho de 2020

Crônica - Manoel

O teólogo e filósofo Immanuel Kant nasceu e morreu em Königsberg, na antiga Prússia. Nunca saiu de sua cidade natal; vivia no mundo das ideias, da metafísica. Era pura crítica. Criticava tudo, com razão. Erudito ao extremo, iluminou a filosofia moderna. Era metódico nos seus estudos e também nos afazeres cotidianos; adotava rotinas rigorosas para tudo: dormia e acordava, lia e estudava, escrevia e lecionava, sempre nos mesmos horários. Passeava pelos mesmos lugares dos dias anteriores, nos exatos horários dos dias anteriores.
Manuelzão, que era cozinheiro de tropa, virou vaqueiro. Afamado conhecedor dos sertões, virou administrador de fazenda. Nasceu em Dom Silvério, na Zona da Mata mineira; por decepção amorosa, saiu de casa e atravessou Minas Gerais atrás de boiada. Foi para Carandaí e Buenópolis, vagou pelas beiras do Rio São Francisco, chegou a Pirapora, voltou para Corinto, atravessou o Rio das Mortes. Não tinha parada; campeava, simplesmente.
Mais tarde, estabelecido na região de Três Marias, tocou boiada para Guimarães Rosa, que colhia anotações sobre as veredas e suas gentes. Uma viagem entre Andrequicé e Cordisburgo, reunindo dois hábeis contadores de histórias, e Manuelzão virou um dos personagens centrais da literatura brasileira. E ganhou o mundo.
Emanuel Lasker, polonês de nascimento, matemático e filósofo, foi exímio enxadrista; exibia sua arte pelas capitais europeias e se consagrou na América do Norte. Foi o segundo campeão mundial de xadrez, e o mais longevo dentre todos eles.
Já Manoelzinho, nascido Manoel Lopes e farmacêutico de formação, sabia mais do que todos os médicos do lugar; diagnosticava de tudo, receitava os remédios necessários, manipulava fórmulas, fazia unguentos e aplicava as medicações. Visitava os doentes em casa, um luxo que os médicos não dispensavam aos pobres. Dono de farmácia, um prático por natureza e paixão, medicou a vida inteira na mesma cidade natal, Lençóis Paulista, onde era querido e respeitado.
Agora mesmo soube de outro Manoel, o Manoelzinho Loreno. Figura ímpar, de Mantenópolis, no interior capixaba. Nascido para fazer cinema, sobrevivia como pedreiro e capinador nas horas de aperto. Lidou apaixonadamente com a sétima arte, como poucos fizeram no mundo. Fã declarado de Chaplin e de Mazzaropi, de faroeste e de terror, Manoelzinho Loreno produziu mais de quarenta filmes: montava o roteiro, selecionava o elenco entre os amigos e vizinhos, indicava as cenas através de desenhos feitos num caderno brochura. Criava os diálogos, escolhia as locações nas vilas e nos morros das fazendas.
Manoelzinho construía cidades cenográficas, dispunha os atores principais no primeiro plano e não esquecia dos figurantes, ao fundo. E rodava tudo em dois dias, para não gastar muito. A trilha sonora vinha de um gravador, acionado atrás da câmera única que um amigo manejava.
Sim, claro, era também o personagem principal dos seus filmes, que eram exibidos na própria cidade; praças e quadras esportivas apinhadas de gente, nas estreias, permitiam a recuperação dos investimentos feitos. O cinema era a alegria da sua vida, como se confere em https://www.youtube.com/watch?v=OzLCcb7OOgc.

2 comentários:

  1. Bela cronica. Parabéns pelo texto. Pelo menos um desses Manoeis eu conheci... o Lopes. Abçs.

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  2. Vidas que não se misturaram, não se cruzaram, mas deixaram lembranças que, certamente, marcaram muitos. No interior, o farmacêutico sempre foi muito procurado e não se recuava a, sabiamente, aconselhar. Hoje, com as limitações e um natural receio, nada sugerem. Uma ótima crônica. Sua esposa ainda trabalha na Caixa? Abraço.

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