No comecinho dos anos 1980, fixei residência num espaçoso e acolhedor sobrado, no Bixiga, Rua Japurá, perto do Teatro Oficina. Fixar residência é modo de dizer, pois ali não fiquei nem quatro anos completos. No fim de união desastrosa, muitas coisas se foram: foram-se os cadernos, os livros, inclusive o autografado, de poesias, do Plínio Marcos. Foram-se os discos, menos os da coleção completa do Maluco Beleza, de que não abri mão. Não deu para salvar os do Alceu Valença, da Amelinha, do Chico; apenas um ou outro Milton Nascimento e alguns clássicos. E também não deu para salvar o sobrado, claro.
As dezenas de cartazes que ornavam as paredes,
conclamando para a criação do Partido dos Trabalhadores, pedindo o direito de
greve, exigindo um basta à ditadura, ficaram apenas na lembrança. Era um sobrado,
entre uma série de outros, oito ou dez, mais ou menos, geminados. Construídos
dos dois lados da rua estreita, formavam um gracioso e curvo corredor, dando a
impressão de um beco sem saída. Era quase que uma rua particular, com pouco
movimento de veículos. Cada sobrado tinha uma única entrada, pela porta da rua,
rente à calçada.
Zé Celso também morava por ali. Era vizinho.
Morava três portas depois da minha. Numa tarde em que fui atender à campainha,
para minha surpresa, lá estava ele. Disse que me via algumas vezes na rua, que
outras vezes me via no teatro. Pediu para entrar e descansar um pouco, até a
chegada do seu companheiro, que ficava com a chave do sobrado deles.
Fez isso diversas e repetidas vezes. Sempre de
roupas brancas. Tomava muita água. E conversava alegremente, contando do seu
dia, dos ensaios e dos projetos. Longas e agradáveis conversas. Falava com
vigor sobre os embates com o Silvio Santos. E depois se ia, com a noite já
caindo.
Aconteceu numa tarde de sábado, por volta das
quatro. A estreita e graciosa Rua Japurá foi, assim, de repente e sem aviso
prévio, sacudida por dois ou três portentosos urros de leão. Ensurdecedores. De
estremecer as paredes sólidas das casas.
Saí, rápido, assustado, à janela, para ver o
bicho. A vizinha da frente, coitava, já estava apavorada, na janela dela. E
gritava: Cuidado, gente!! Fechem as portas! É perigoso! Enfim, um fuzuê na rua,
tal e coisa... Mas, bah! Cadê o leão? Que leão? Ora, que nada. Nada de leão. Vimos
apenas o nosso querido Zé Celso, que ria e ria, às gargalhadas, bem no meio da
rua, na frente do sobrado dele. Todo de branco, estava ele simplesmente testando
uma potentíssima caixa de som – que se mostrou eficiente, claro, para encher o
Oficina com sons fidedignos durante a peça que foi encenar um pouco depois.
Ficam as boas lembranças.
O escritor que tem a sensibilidade de usar a palavra para fazer reviver um pedacinho da vida merece nosso agradecimento.
ResponderExcluirBonito depoimento sobre um excepcional artista, num dia-a-dia quase normal como vizinho...
ResponderExcluirEzio, que delícia de leitura! Amei! Grande abraço.
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