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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Crônica - Zé Celso, o leão da Japurá

 

No comecinho dos anos 1980, fixei residência num espaçoso e acolhedor sobrado, no Bixiga, Rua Japurá, perto do Teatro Oficina. Fixar residência é modo de dizer, pois ali não fiquei nem quatro anos completos. No fim de união desastrosa, muitas coisas se foram: foram-se os cadernos, os livros, inclusive o autografado, de poesias, do Plínio Marcos. Foram-se os discos, menos os da coleção completa do Maluco Beleza, de que não abri mão. Não deu para salvar os do Alceu Valença, da Amelinha, do Chico; apenas um ou outro Milton Nascimento e alguns clássicos. E também não deu para salvar o sobrado, claro.

As dezenas de cartazes que ornavam as paredes, conclamando para a criação do Partido dos Trabalhadores, pedindo o direito de greve, exigindo um basta à ditadura, ficaram apenas na lembrança. Era um sobrado, entre uma série de outros, oito ou dez, mais ou menos, geminados. Construídos dos dois lados da rua estreita, formavam um gracioso e curvo corredor, dando a impressão de um beco sem saída. Era quase que uma rua particular, com pouco movimento de veículos. Cada sobrado tinha uma única entrada, pela porta da rua, rente à calçada.

Zé Celso também morava por ali. Era vizinho. Morava três portas depois da minha. Numa tarde em que fui atender à campainha, para minha surpresa, lá estava ele. Disse que me via algumas vezes na rua, que outras vezes me via no teatro. Pediu para entrar e descansar um pouco, até a chegada do seu companheiro, que ficava com a chave do sobrado deles.

Fez isso diversas e repetidas vezes. Sempre de roupas brancas. Tomava muita água. E conversava alegremente, contando do seu dia, dos ensaios e dos projetos. Longas e agradáveis conversas. Falava com vigor sobre os embates com o Silvio Santos. E depois se ia, com a noite já caindo.

Aconteceu numa tarde de sábado, por volta das quatro. A estreita e graciosa Rua Japurá foi, assim, de repente e sem aviso prévio, sacudida por dois ou três portentosos urros de leão. Ensurdecedores. De estremecer as paredes sólidas das casas.

Saí, rápido, assustado, à janela, para ver o bicho. A vizinha da frente, coitava, já estava apavorada, na janela dela. E gritava: Cuidado, gente!! Fechem as portas! É perigoso! Enfim, um fuzuê na rua, tal e coisa... Mas, bah! Cadê o leão? Que leão? Ora, que nada. Nada de leão. Vimos apenas o nosso querido Zé Celso, que ria e ria, às gargalhadas, bem no meio da rua, na frente do sobrado dele. Todo de branco, estava ele simplesmente testando uma potentíssima caixa de som – que se mostrou eficiente, claro, para encher o Oficina com sons fidedignos durante a peça que foi encenar um pouco depois.

Ficam as boas lembranças.

3 comentários:

  1. O escritor que tem a sensibilidade de usar a palavra para fazer reviver um pedacinho da vida merece nosso agradecimento.

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  2. Bonito depoimento sobre um excepcional artista, num dia-a-dia quase normal como vizinho...

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  3. Ezio, que delícia de leitura! Amei! Grande abraço.

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