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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

domingo, 29 de setembro de 2024

Crônica - Ternas memórias

 

Eis que me chega, como regalo do meu filho Raul, As Ternas Memórias de Julio Escobar e Outras Rememorações, livro com 18 contos da lavra do escritor e querido amigo Marco Antonio Bin, lançado em 2023 pela Mondru Editora. Garantia de uma leitura agradável, estou certo disso, pelo tanto que conheço do estilo fluente, leve e inteligente que caracteriza os textos do autor.

Tive oportunidade de participar do corpo editorial do jornal da APCEF/SP, no ano de 1986; junto com Marco Bin, Bernadete, Beth Haga, Roberto Rossi, Leo e o saudoso Zé Roberto, fundamos o ESPAÇO, hoje transformado em revista de circulação estadual, e o abrimos para a efetiva participação dos associados. Foi nele que Marco Bin publicou O Arbusto de Octopunko, um conto deveras interessante e de boa repercussão. E não parou mais de produzir excelentes obras.

Naquela época tínhamos um time de futebol de salão (ainda não se falava em futsal, as regras eram outras, a bola era pesada e coisa e tal). Nos campeonatos da Caixa Federal vestíamos o que sobrava dos uniformes oferecidos pela organização dos certames. A sobra das sobra. Algumas camisas tinham número, outras não; algumas eram compridas ou largas demais, esgarçadas; outras eram tão curtas que deixavam a descoberto abdomens nada atraentes. Umas tinham gola; outras não. Mangas compridas e mangas curtas vinham misturadas. Calções e meias, cada um levava o que tinha em casa, nas mais variadas cores e tamanhos. Desuniformes ridículos. O sempre elegante Marco Bin, líder do time, ficava indignado: Gente, é vergonhoso; estamos parecendo o exército de Brancaleone! Não é possível! Então ríamos todos – e entrávamos em quadra para os inglórios combates.

Os anos 1980 eram os dos bons tempos do Cine Bijou, na Praça Roosevelt, com suas inesquecíveis sessões da meia-noite. Lá eu vi, mais de uma vez, o Incrível Exército de Brancaleone, um clássico da cavalaria medieval levado às telas pelo diretor Mario Monicelli. No enredo, um exército composto de maltrapilhos e esfomeados percorre a Europa medieval, tendo um esquálido pangaré (tadinho!) como cavalgadura. Nas andanças, o grupo se depara com a peste negra, com bárbaros, bruxas, bruxos e tudo o mais que se podia esperar naquela época.

A trilha sonora do filme é contagiante, com destaque para a marcha triunfal:


Branca! Branca! Branca!

Leon! Leon! Leon!

Lione al vento, stiam marciando.

Noi siamo l’armata Brancaleone.

 

Branca! Branca! Branca!

Leon! Leon! Leon!

 

O porteiro do Cine Bijou era um senhor vestido a caráter: usava um elegante paletó marrom, com botões dourados e reluzentes. A gravata, a calça e os sapatos eram pretos. Sujeito quieto, de hábitos discretos; um leve sorriso só de vez em quando. Mas ele se esbaldava quando ouvia a marcha que vazava da sala de exibição. Interrompia o seu trabalho na catraca e saia marchando ao som da trilha sonora. Virava uma criança! Literalmente.

Do que ele mais gostava era do estribilho: Branca! Branca! Branca! Leon! Leon! Leon! Abria discretamente a cortina e olhava, rápido, para dentro. Seu corpo como que tremia inteiro. Dizia para todos, vibrando: Eu gosto disso! Essa música é bonita. Cerrava os punhos e movimentava-os como que regendo uma banda invisível. E saia marchando, marchando e marchando pelo saguão até que a música terminasse.

O povo, do lado de fora, gostava da cena. Alguns até aplaudiam a performance enquanto aguardavam na fila. Depois, sem disfarçar o êxtase experimentado, o porteiro tentava se recompor e voltava à catraca para a recepcionar o público da sessão seguinte.

Ternas e inesquecíveis memórias, agora reavivadas com a boa companhia de Julio Escobar. E, claro, deixo de comentar os excelentes textos de Marco Bin para não estragar o prazer dos potenciais leitores. É um livro que poderia ser lido de um só fôlego, mas o melhor mesmo é não ter pressa. É para sentir o prazer da boa leitura, como que vagando pelas ruas de Berlim, entre a Kudamm e a estação Anhalter Bahnhof;  ou saboreando um tostado de queijo e uma cerveja num café de Buenos Aires.

       

 


Um comentário:

  1. Querido Ezio, que belas recordações você traz, e fico honrado em estar presente em algumas delas. Nesta data tão bonita, um abraço saudoso..

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