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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Crônica - Nas barrancas do Itaim



Excelentes papos com minha cunhada Lúcia, professora de mão cheia, sempre acompanhados de uma salineira amarelinha. Contação de história. Viagens no tempo, lembranças várias. Lembranças do Rio Itaim, que corre desde Cambuí, desliza pela Boa Vista, passa por trás do Algodão e acaba no Rio Sapucaí Mirim, beirando a Fernão Dias.  Daí para baixo, suas águas passam pelo Careaçu e ajudam a encher a Represa de Furnas. Depois, viajam até o Rio Paraná e banham, muito lá longe, Montevideo e Buenos Aires. Por fim, se perdem no Atlântico.

Lembranças das pescarias com o Marcelo e com o Zé do Lazo, que me mostraram, pacientemente, alguns rebojos com graúdos lambaris. Lembranças dos meus medos e meus pavores. Uma volta longa e vagarosa pelas minhas paúras, com boas risadas.
Muitas histórias: já corri de um serrote, já me desviei de mourão de cerca. Tudo de puro medo. E ouvi inesquecíveis causos do Tio Lino, morador das Taperas. As barrancas do Itaim testemunharam uma parte boa da minha vida.
Meu medo de cachorro me aprontou uma cilada: sobre o tronco de uma árvore, nos fundos do sítio do Tio Lino, eu lidava com linha e caniço entre os galhos; mal me equilibrava sobre o rio. Foi quando ouvi um cachorro correndo em minha direção. Vinha babando. Mato fechado, não vi o animal, apenas ouvi que o bicho se aproximava, ofegante. Desci, pulei, quase cai da árvore aos atropelos, larguei caniço, embornal e tralha, e o bicho que vinha correndo, roque-roque-roque, quase me alcançado. Corri por uma trilha, me joguei por baixo de uma cerca de arame e, enfim, algo estranho: nada de o cachorro me alcançar. Parei, prestei bem atenção naquele roque-roque-roque e só então me dei conta de que não tinha cachorro no meu encalço. Era apenas o Tio Lino serrando um tronco de eucalipto. Serrote vai, serrote vem, serrote vai, roque-roque-roque, e eu suando frio, desesperado com medo de mordida.
Vexado comigo mesmo, quase que ri sozinho, na beira do Itaim. Vexado, sim, mas, pelo menos, são e salvo do cachorro imaginário.
Em outra ocasião, eu e o Eder, outro bom companheiro de traíras, atravessamos um longo pasto e nos embrenhamos por uma mata densa e de um verde muito vistoso. Tudo isso para alcançar o Itaim além de uma curva. Lugar desconhecido, bonito e agradável. Esquecemo-nos da vida e a noite caiu sem aviso. Hora de voltar e dois medrosos apavorados, tentando adivinhar o caminho. Então vimos um imenso vulto, preto, que só podia ser um boi bravo. Melhor desviar do bicho. Demos uma volta grande, passamos por um brejo. E só depois, cansados e com a luz da lua, percebemos que o boi não era mais do que um mourão de porteira, solitário, inerte, tudo o que sobrou de uma antiga cerca no meio do pasto.
Vexados, só nos restava rir dos nossos medos. Vexados, sim, mas, pelo menos, sãos e salvos do boi imaginário.
Tio Lino era bom de conversa; muitas vezes deixei os lambaris em paz e fiquei ouvindo gostosas histórias. Me contou, todo sério e com ares de apreensão, que ouviu, certa tarde, num rebojo perto da Ponte da Boa Vista, alguém chamando, meio que cantando, a pequenos intervalos de tempo, assim: “Aaaaamigo... Aaaaamigo... Aaaaamigo...”. Apurou os ouvidos notou que chamado vinha de um grande rebojo do Itaim, por trás de uma moita de arranha-gato. Intrigado com aquilo, resolveu espiar. Cortou, com uma foice, alguns galhos dos espinhos pontiagudos e, surpreso, viu o inusitado da coisa: um pedaço de um disco de vinil, de Waldick Soriano, circulava pelo rebojo; cada vez que passava sob o arranha-gato, um espinho lhe entrava pelos sulcos, feito agulha de vitrola, e tocava a música famosa desse cantor já falecido.
Ah! Tio Lino! Esse não tinha jeito. Viveu uma longa vida de alegrias à beira do Rio Itaim. E ficou na memória dos ribeirinhos, como registro de uma época em que esse rio era majestoso, de águas profundas e claras.
E a Lúcia segue, firme e incansável, repetindo histórias. Os seus aluninhos se deleitam e aprendem, nas proximidades do Itaim.

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