Excelentes
papos com minha cunhada Lúcia, professora de mão cheia, sempre acompanhados de
uma salineira amarelinha. Contação de história. Viagens no tempo, lembranças
várias. Lembranças do Rio Itaim, que corre desde Cambuí, desliza pela Boa
Vista, passa por trás do Algodão e acaba no Rio Sapucaí Mirim, beirando a
Fernão Dias. Daí para baixo, suas águas passam pelo Careaçu e ajudam a
encher a Represa de Furnas. Depois, viajam até o Rio Paraná e banham, muito lá
longe, Montevideo e Buenos Aires. Por fim, se perdem no Atlântico.
Lembranças
das pescarias com o Marcelo e com o Zé do Lazo, que me mostraram,
pacientemente, alguns rebojos com graúdos lambaris. Lembranças dos meus medos e
meus pavores. Uma volta longa e vagarosa pelas minhas paúras, com boas risadas.
Muitas
histórias: já corri de um serrote, já me desviei de mourão de cerca. Tudo de
puro medo. E ouvi inesquecíveis causos do Tio Lino, morador das Taperas. As
barrancas do Itaim testemunharam uma parte boa da minha vida.
Meu medo de
cachorro me aprontou uma cilada: sobre o tronco de uma árvore, nos fundos do
sítio do Tio Lino, eu lidava com linha e caniço entre os galhos; mal me
equilibrava sobre o rio. Foi quando ouvi um cachorro correndo em minha direção.
Vinha babando. Mato fechado, não vi o animal, apenas ouvi que o bicho se
aproximava, ofegante. Desci, pulei, quase cai da árvore aos atropelos, larguei
caniço, embornal e tralha, e o bicho que vinha correndo, roque-roque-roque,
quase me alcançado. Corri por uma trilha, me joguei por baixo de uma cerca de
arame e, enfim, algo estranho: nada de o cachorro me alcançar. Parei, prestei
bem atenção naquele roque-roque-roque e só então me dei conta de que não tinha
cachorro no meu encalço. Era apenas o Tio Lino serrando um tronco de eucalipto.
Serrote vai, serrote vem, serrote vai, roque-roque-roque, e eu suando frio,
desesperado com medo de mordida.
Vexado
comigo mesmo, quase que ri sozinho, na beira do Itaim. Vexado, sim, mas, pelo
menos, são e salvo do cachorro imaginário.
Em outra
ocasião, eu e o Eder, outro bom companheiro de traíras, atravessamos um longo
pasto e nos embrenhamos por uma mata densa e de um verde muito vistoso. Tudo
isso para alcançar o Itaim além de uma curva. Lugar desconhecido, bonito e
agradável. Esquecemo-nos da vida e a noite caiu sem aviso. Hora de voltar e
dois medrosos apavorados, tentando adivinhar o caminho. Então vimos um imenso
vulto, preto, que só podia ser um boi bravo. Melhor desviar do bicho. Demos uma
volta grande, passamos por um brejo. E só depois, cansados e com a luz da lua,
percebemos que o boi não era mais do que um mourão de porteira, solitário,
inerte, tudo o que sobrou de uma antiga cerca no meio do pasto.
Vexados, só
nos restava rir dos nossos medos. Vexados, sim, mas, pelo menos, sãos e salvos
do boi imaginário.
Tio Lino era
bom de conversa; muitas vezes deixei os lambaris em paz e fiquei ouvindo
gostosas histórias. Me contou, todo sério e com ares de apreensão, que ouviu,
certa tarde, num rebojo perto da Ponte da Boa Vista, alguém chamando, meio que
cantando, a pequenos intervalos de tempo, assim: “Aaaaamigo... Aaaaamigo...
Aaaaamigo...”. Apurou os ouvidos notou que chamado vinha de um grande rebojo do
Itaim, por trás de uma moita de arranha-gato. Intrigado com aquilo, resolveu
espiar. Cortou, com uma foice, alguns galhos dos espinhos pontiagudos e,
surpreso, viu o inusitado da coisa: um pedaço de um disco de vinil, de Waldick
Soriano, circulava pelo rebojo; cada vez que passava sob o arranha-gato, um
espinho lhe entrava pelos sulcos, feito agulha de vitrola, e tocava a música
famosa desse cantor já falecido.
Ah! Tio
Lino! Esse não tinha jeito. Viveu uma longa vida de alegrias à beira do Rio
Itaim. E ficou na memória dos ribeirinhos, como registro de uma época em que
esse rio era majestoso, de águas profundas e claras.
E a Lúcia
segue, firme e incansável, repetindo histórias. Os seus aluninhos se deleitam e
aprendem, nas proximidades do Itaim.
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