Trabalhei durante muitos anos da Justiça Federal, em
São Paulo. A sua sede ainda ficava na Praça da República. Atendia balcão e
fazia serviços de datilografia.
Sexta-feira, parte da tarde, as portas quase por se
fecharem, apareceu um advogado para examinar determinados autos de uma execução.
Apareceu sem muitas palavras. Ventre avantajado, estatura mediana, barba por
fazer no rosto redondo, boca de lábios salientes. Sobre o nariz, óculos com
lentes grossas. Bem grossas e esverdeadas. Sua respiração era pesada, sonora;
respirava com dificuldade. Vestia um vistoso paletó azul claro. Paletó
chamativo, nitidamente ensebado, puído e insuficiente para a barriga grande; a
camisa, de um branco encardido, parecia estufada, com botões prestes a
explodirem.
Folheava folha por folha, sem nenhuma pressa. Erguia
os autos e os encostava de encontro aos olhos. Tinha vista curta, curtíssima.
Míope que só vendo.
Logo surgiu o burburinho entre os escreventes: Olha o
ceguinho. Será que vai comer o processo? Quem é ele? Alguém conhece? É
advogado de quem? Do credor? Do Devedor?
Não, ninguém conhecia o advogado, ninguém tinha visto. Que figura! Uma
figura ímpar, no modo de manusear os autos.
Ficou ali por um tempo desusado, autos colados no
rosto, respiração difícil, virando folhas para frente e para trás. Ia do começo
para o fim, voltava do fim para o começo. Parece que virava as folhas com o
nariz. Credo! Que nojo. Eu é vou por a mão nisso, depois. Eita, ceguinho doido!
Ceguinho para cá, ceguinho para lá, risadas incontidas. Isso durou bem uma meia
hora. Mais ninguém no balcão, só ele, arquejando, sofrendo com a respiração
curta. Inquieto, enfim.
Já passada a hora de fechar as portas do cartório, o
dito se foi. Veio em silêncio e em silêncio foi embora. O mal-educado nem
agradeceu pelo atendimento. Quando percebemos, já tinha ido. Enquanto
fechávamos máquinas e janelas, no rescaldo do dia, o homem desapareceu.
Quinze ou vinte dias depois, alguém precisou daqueles
autos. E então uma surpresa desagradável: Cadê o cheque? Cheque? Que cheque? O
cheque dessa execução, ora! Quem pegou? Eu não vi! Nem eu. Não é possível!
Sumiu? Vem ver!
Corre-corre e incredulidade. Não é possível! Como
assim? No lugar do cheque, apenas restos daquilo que um dia foi um título de
crédito. Um dos grampos ainda ficou lá, resistindo bravamente, mas com sinais de
ferrugem; o outro grampo, por certo, foi engolido pelo advogado, junto com o
cheque. Deglutido em câmara lenta, o silêncio quebrado apenas pela sonoridade
da respiração arfante: os evidentes sinais de baba na folha em branco não
deixavam dúvidas sobre a proeza do advogado cego.
Ah! Cego?
Legal! Enquanto o pessoal faziam críticas e riam o pobre advogado aplicava o golpe e que golpe!kkkkk
ResponderExcluirO cidadão nos enganou direitinho. Difícil, depois, foi explicar isso para o juiz... Foi muito complicado.
Excluirhahahaa amei!
ExcluirConfesso que também fui surpreendida kkk
Parabéns pela escrita, querido professor!
Puxa vida,kkkk e ceguinho danado!!!
ExcluirParabéns pelo conto Professor... se o Tião Carreiro fosse vivo, com certeza faria dessa história uma bela moda de viola como a história do Italiano e o Caipira... um abração...
ResponderExcluirBem pensado, pode ser que sim. Abraços e obrigado pela visita.
ExcluirO pior "cego" é o que finge não ver. Quanta lição nesse conto, hein Ezinho!
ResponderExcluirPassamos por isso e, depois, passamos pela bronca que o juiz nos deu. Foi um rolo danado, muito complicado.
ExcluirBoa, essa frase, Celio. O pior cego é o que finge não ver - e vê tudo.
ResponderExcluirÀs vezes imbuídos em nosso altruísmo, afinal de contas parecia um cego. Às vezes afogados em nosso próprio deboche. O conto nos mostra, com maestria, que devemos nos reconhecer nos outros, para o bem ou para o mal, num movimento pendular em busca de empatia. Ótima lição, caro mestre, como era de se esperar. Forte abraço.
ResponderExcluirBelas palavras, Wesler. Abraços para você.
ExcluirSe o cheque não foi compensado, o crime compensou! Muito boa essa história.
ResponderExcluirUm pouco mais tarde eu saí daquele cartório e não acompanhei o desenrolar do caso. Mas foi interessante. Abraços, Santino.
Excluirkkkk muito bom; cego nada!
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