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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Crônica - Segredos da terra


Nos finais de tarde, refrescando do calor intenso, sentávamos ao pé do Matão, nos fundos do quintal de casa. Tenho poucas lembranças da época, quase nenhuma; era o catatau do grupo e nem sempre estava junto. O terreno do pai estava no alinhamento da divisa entre a cidade e o Matão propriamente dito: uma cerca de arame farpado, três fios brilhantes e recentemente esticados, nos separavam de uma grande mata virgem, nativa, restos da original mata atlântica que cobria a região.

Matão, mata fechada, ninguém se aventurava pelos seus entremeios – o que guardaria? O Rio Lençóis era logo ali, mas ninguém ousava. A cerca de arame era a última fronteira: foi onde tomei conhecimento da mula-sem-cabeça, tão bem descrita pelo Santino que eu logo reconheci o animal quando o vi. Vi duas vezes ou três vezes. Preta, alta, passos firmes, crinas douradas e longas. Aparecia sem pressa, parava e olhava fixo.
Aquela visão inusitada dava medo, não vou negar. Tanto que, depois, ao cair da noite, requeria companhia para subir de volta para casa. Sozinho, não, que era perigoso. Mesmo com o quintal já desmatado, apenas com tocos das árvores, a precaução era necessária. Quintal comprido demais e muita caminhada que não acabava nunca.
A mula-sem-cabeça impunha respeito, mais ainda quando me encarava com o seu único e redondo olho preto bem aberto na frente do pescoço. Pescoço curto, meio pescoço, terminado em chapa, linha reta, como que cortado à perfeição com uma guilhotina. Bem no centro do cotoco, entre as crinas que caiam, o olho negro brilhante me encarou. Duas ou três vezes. Por sorte, nunca avançou; só ficava ali, olhando firme. Ora de um lado da cerca, ora do outro lado; nem dava para saber como passava por entre os fios de arame.
Isso era coisa que se via e não podia contar. Poucos viam. Segredo do grupo, bem guardado. Bom, depois, menino pequeno, custava dormir de noite; mas segredo era segredo e pai e mãe não sabiam das causas da insônia.  Guardei comigo até tempos depois, quando, anos mais tarde, soube, por uns amigos, de um buraco diferente que havia num terreno baldio, das vizinhanças, no qual buraco morava um saci.
Já crescidinho, fui ver, corajoso. Ficava bem perto do rio, então já de fácil acesso por conta das matas derrubadas com o expansão da vila. Um buraco bem feito, diâmetro de um copo americano, pouco menos que isso. No canto do terreno, na margem do rio, um enorme círculo de terra vermelha de onde nada brotava; no centro do círculo, enfim, o buraco. A entrada, de tanto usada pelo morador, era bem lisinha, de terra socada, com leves morrinhos laterais para não escorrer água.
Espiei de longe, primeiro; só de pouco em pouco é que cheguei mais perto, precavido. O dito cujo do saci era pequeno, magro, e mesmo assim tinha que se espichar feito elástico para passar pelo buraco. E passava rápido como o vento; um vapt e já se foi. Isso eu deduzia: ver mesmo, assim, ver direitinho, não dava. Só o barulho do vapt. Do buraco, que sumia profundo terra abaixo, vinha um absoluto silêncio. Uma vez, de joelho, colei o ouvido no chão e nem o vento chiava. Em volta não se ouvia pássaro cantando; o rio corria manso, liso e sem rebojo.
Nunca contei isso para ninguém, nem para os meus irmãos, por receio de assustá-los.
Acho que a mula-sem-cabeça pastava nas imediações do buraco. Mas ela eu nunca vi ali perto, então não posso afirmar.
De noite, eu sonhava; me via andando na beira do Rio Lençóis, leve e quase suspenso no ar, como que pairando pelo círculo de terra vermelha. Sonhava que caia no buraco do saci. Meu corpo se afilava e eu me sumia tudo para dentro num sem fundo. Via só o escuro, absoluto escuro, escorregando pela parede de terra redonda e apertada. Tudo era vazio e silêncio; só de cima é que vinha um poque-repoque de patas pesadas: a mula, eu acho que era ela.

7 comentários:

  1. De fato, você nos deve essa. Nunca nos contou sobre o saci. E eu com uma vontade louca de ver o negrinho, se andava de pulinho, se voava com o vento... A mula-sem-cabeça? Conheci-a muito de perto. Escura, quase preta, andar altivo, acho que quando ficava brava soltava fogo pelas ventas. Seus anseios eram arrefecidos altas horas da noite ali mesmo, no matão. Essas histórias eu não contava pra você, que era muito novinho pra entender. Parabéns, mais uma bela crônica. Guarda, que ela merece enriquecer nosso livro coletivo.

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    1. Então... Algumas coisas vão para o túmulo. É prudente. Abraços, Santino.

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  2. O tal do Saci sempre tentei arrebatá-lo. Não perdia um redemoinho no quintal de terra, ao lado da casa. Corria pegar a velha peneira de abanar café, que o pai guardava lá no paiol. Atirava-a sobre o redemoinho na esperança de ver o saci aprisionado. Era assim que os meninos da rua diziam que era possível ver o tal negrinho de perto. Para não passar vergonha, dizia para os curiosos que estava caçando borboletas. Se acreditavam? Não sei não...

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    1. Sim, diziam que dava para pegar o saci com a peneira, em dia de redemoinho. Eu nunca tentei, porque não saberia, depois, o que fazer com ele. Mas, se jogasse a peneira bem jogadinha, na horinha certa, ah!, pegava sim.

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  3. Que fartura de Sacis naquele trecho de mata! Me parece que hoje eles estão restritos a algumas reservas aqui no interior do estado. Quando criança procurei pela chácara do meu pai, mas nunca tive sucesso (provavelmente por desconhecer a técnica da peneira), se soubesse que eles estavam tão perto, ali no quintal da vó...

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  4. Oi,Tales, bem-vindo. Em Botucatu tem uma associação de criadores. Muitas espécies são mantidas em touceiras de bambu; o meu amigo Simões é associado e cria alguns no quintal da casa dele, em São José do Rio Preto. Um forte abraço para vocês.

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