Nos finais de tarde, refrescando do calor intenso, sentávamos
ao pé do Matão, nos fundos do quintal de casa. Tenho poucas lembranças da
época, quase nenhuma; era o catatau do grupo e nem sempre estava junto. O
terreno do pai estava no alinhamento da divisa entre a cidade e o Matão
propriamente dito: uma cerca de arame farpado, três fios brilhantes e
recentemente esticados, nos separavam de uma grande mata virgem, nativa, restos
da original mata atlântica que cobria a região.
Matão, mata fechada, ninguém se aventurava pelos seus
entremeios – o que guardaria? O Rio Lençóis era logo ali, mas ninguém ousava. A
cerca de arame era a última fronteira: foi onde tomei conhecimento da
mula-sem-cabeça, tão bem descrita pelo Santino que eu logo reconheci o animal quando
o vi. Vi duas vezes ou três vezes. Preta, alta, passos firmes, crinas douradas
e longas. Aparecia sem pressa, parava e olhava fixo.
Aquela visão inusitada dava medo, não vou negar. Tanto
que, depois, ao cair da noite, requeria companhia para subir de volta para
casa. Sozinho, não, que era perigoso. Mesmo com o quintal já desmatado, apenas
com tocos das árvores, a precaução era necessária. Quintal comprido demais e
muita caminhada que não acabava nunca.
A mula-sem-cabeça impunha respeito, mais ainda quando
me encarava com o seu único e redondo olho preto bem aberto na frente do
pescoço. Pescoço curto, meio pescoço, terminado em chapa, linha reta, como que
cortado à perfeição com uma guilhotina. Bem no centro do cotoco, entre as
crinas que caiam, o olho negro brilhante me encarou. Duas ou três vezes. Por
sorte, nunca avançou; só ficava ali, olhando firme. Ora de um lado da cerca,
ora do outro lado; nem dava para saber como passava por entre os fios de arame.
Isso era coisa que se via e não podia contar. Poucos
viam. Segredo do grupo, bem guardado. Bom, depois, menino pequeno, custava
dormir de noite; mas segredo era segredo e pai e mãe não sabiam das causas da
insônia. Guardei comigo até tempos
depois, quando, anos mais tarde, soube, por uns amigos, de um buraco diferente
que havia num terreno baldio, das vizinhanças, no qual buraco morava um saci.
Já crescidinho, fui ver, corajoso. Ficava bem perto do
rio, então já de fácil acesso por conta das matas derrubadas com o expansão da
vila. Um buraco bem feito, diâmetro de um copo americano, pouco menos que isso.
No canto do terreno, na margem do rio, um enorme círculo de terra vermelha de
onde nada brotava; no centro do círculo, enfim, o buraco. A entrada, de tanto
usada pelo morador, era bem lisinha, de terra socada, com leves morrinhos
laterais para não escorrer água.
Espiei de longe, primeiro; só de pouco em pouco é que
cheguei mais perto, precavido. O dito cujo do saci era pequeno, magro, e mesmo
assim tinha que se espichar feito elástico para passar pelo buraco. E passava
rápido como o vento; um vapt e já se foi.
Isso eu deduzia: ver mesmo, assim, ver direitinho, não dava. Só o barulho do vapt. Do buraco, que sumia profundo terra
abaixo, vinha um absoluto silêncio. Uma vez, de joelho, colei o ouvido no chão
e nem o vento chiava. Em volta não se ouvia pássaro cantando; o rio corria
manso, liso e sem rebojo.
Nunca contei isso para ninguém, nem para os meus
irmãos, por receio de assustá-los.
Acho que a mula-sem-cabeça pastava nas imediações do buraco. Mas ela eu nunca vi ali perto, então não posso afirmar.
Acho que a mula-sem-cabeça pastava nas imediações do buraco. Mas ela eu nunca vi ali perto, então não posso afirmar.
De noite, eu sonhava; me via andando na beira do Rio
Lençóis, leve e quase suspenso no ar, como que pairando pelo círculo de terra
vermelha. Sonhava que caia no buraco do saci. Meu corpo se afilava e eu me sumia
tudo para dentro num sem fundo. Via só o escuro, absoluto escuro, escorregando
pela parede de terra redonda e apertada. Tudo era vazio e silêncio; só de cima
é que vinha um poque-repoque de patas pesadas: a mula, eu acho que era ela.
De fato, você nos deve essa. Nunca nos contou sobre o saci. E eu com uma vontade louca de ver o negrinho, se andava de pulinho, se voava com o vento... A mula-sem-cabeça? Conheci-a muito de perto. Escura, quase preta, andar altivo, acho que quando ficava brava soltava fogo pelas ventas. Seus anseios eram arrefecidos altas horas da noite ali mesmo, no matão. Essas histórias eu não contava pra você, que era muito novinho pra entender. Parabéns, mais uma bela crônica. Guarda, que ela merece enriquecer nosso livro coletivo.
ResponderExcluirEntão... Algumas coisas vão para o túmulo. É prudente. Abraços, Santino.
ExcluirO tal do Saci sempre tentei arrebatá-lo. Não perdia um redemoinho no quintal de terra, ao lado da casa. Corria pegar a velha peneira de abanar café, que o pai guardava lá no paiol. Atirava-a sobre o redemoinho na esperança de ver o saci aprisionado. Era assim que os meninos da rua diziam que era possível ver o tal negrinho de perto. Para não passar vergonha, dizia para os curiosos que estava caçando borboletas. Se acreditavam? Não sei não...
ResponderExcluirSim, diziam que dava para pegar o saci com a peneira, em dia de redemoinho. Eu nunca tentei, porque não saberia, depois, o que fazer com ele. Mas, se jogasse a peneira bem jogadinha, na horinha certa, ah!, pegava sim.
ExcluirQue fartura de Sacis naquele trecho de mata! Me parece que hoje eles estão restritos a algumas reservas aqui no interior do estado. Quando criança procurei pela chácara do meu pai, mas nunca tive sucesso (provavelmente por desconhecer a técnica da peneira), se soubesse que eles estavam tão perto, ali no quintal da vó...
ResponderExcluirOi,Tales, bem-vindo. Em Botucatu tem uma associação de criadores. Muitas espécies são mantidas em touceiras de bambu; o meu amigo Simões é associado e cria alguns no quintal da casa dele, em São José do Rio Preto. Um forte abraço para vocês.
ResponderExcluirLegal... criativo. Parabéns.
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