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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Crônica - Histórias do Vô Zé Pedro


Um dia ele apareceu com a calva escalavrada, um sulco vistoso desde a testa até o alto da cabeça. Então ele tirou as botinas, esticou os pés para perto da boca do fogão de lenha; macetou um Melhoral, dos que sempre trazia no bolso da camisa, e tomou com um chá, feito pela filha, com água quente e açúcar. E contou mais uma das suas aventuras: seguia ele, tranquilo e displicente, sobre a mulinha, num desvio de terra batida da Fonseca em que não passava há tempos. À frente, uma árvore, um galho rebaixado. Olhou bem, achava que dava para passar. Calculou errado, não deu. Bem que ainda tentou evitar a topada, mas a mulinha, espantada com o movimento brusco que ele fez para se abaixar, apertou o passo e o galho ralou a cabeça dele mais forte ainda. Quase caiu. Equilibrou-se a custo, mas teve que voltar para pegar o chapéu.

O Vô Zé Pedro era assim. Contava as suas histórias e ria dele mesmo, de bom humor e de bem com a vida. Era relativamente baixo e usava camisa branca, de mangas compridas, de tecido grosso. As calças, presas com um cinturão de couro, eram tradicionalmente amarronzadas, de brim. Nunca o vi com roupas escuras. Tinha os cabelos brancos, finos e lisos, parcos por conta da idade. Olhos azuis e pequenos, nariz adunco. A fala, mansa e pausada, tinha por companhia um gesto amplo: braço e mão se abriam como que apontando o infinito.
Passava as tardes na casa da filha Mariana, papeando com os netos e com quem aparecesse. Tinha frio nos pés, gostava de beirar o fogão.
De outra feita chegou reclamando de dor nas costas. Nem andava direito. E contou sobre uma bezerra, jersinha de raça. Encontrou a dita morta, no pasto, como que por acaso. Soberbo, nem pediu ajuda: ele mesmo providenciou o enterro em cova que cavou ao lado da carcaça.  Arrastava ela pelas pernas e depois cobria com a terra solta, me explicou. Mais pesada do que supunha, puxa pelas pernas da frente, puxa pelas pernas de trás, puxa pelo rabo e pelo pescoço, não estava fácil. As próprias pernas bambeiam de cansaço, o suor escorre pelo corpo magro. Desliza a bezerra de lá, desliza o Vô de cá, escorregam os dois, foram ambos para dentro da cova. Por pouco que não fica preso sob o peso da bezerrinha, no ermo do pasto. Só com muito esforço é que escapou daquela. Contava e ria. Contava para fazer rir.
Em tardes de frio intenso ele não aparecia. Então eu caminhava pela estrada da Grotinha e ia até a Fonseca, no sítio dele. Encontrava-o na sua casinha, cômodo único, que era só dele, separada da casa propriamente dita. Esquentando o fogo. Na trempe do fogão, sempre uma caçarola com água aquecida e uma chaleira no jeito para o chá.  Ficava me esperando para contar causos. Alimentava o fogo e contava da ceva que estava fazendo, ali no Três Irmãos, nos fundos do quintal. Quando esquentar o tempo, a gente pega uns lambaris.  
Uma vez me presenteou com uma varinha de pesca, que ele mesmo fez. Colheu a melhor haste do bambuzal, limpou com o canivete de cabo de osso. Pendurada no beiral do quartinho, com meio tijolo amarrado embaixo, esticou, tirou a curva da natureza. Por fim, untou com sebo de boi e passou pelo fogo, repetidas vezes, para dar a leveza e a flexibilidade necessárias para a pesca do lambari. Pronta em uns quinze ou vinte dias, sem o verdor e com aparência de madura, caprichada.
Ficou perfeita. Pena que eu não soube conservá-la como merecia.

9 comentários:

  1. Taí! Histórias de bovinos e equinos devemos ter muitas para contar, hein...

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    1. Parte da nossa vida, honrosa vida. Abraços, Celio, e obrigado.

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  2. E tem aquela da piracema de lambari no rio Lençóis. Nunca vi coisa igual, quando falo dizem que é conversa de pescador.

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    1. Santino, eu era muito criança na época. Mas me lembro desse episódio. Vale a pena escrever, você que vivenciou o fato. Abraços e obrigado.

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    1. Pois é, mas ele riu muito desse fato. Pessoa muito boa, deixou saudades em todos nós.

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  4. Essa pescaria rendeu... Sebo de boi? que dica! me trouxe recordações de pescaria no tempo de criança! obrigado pela crônica!

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  5. Olá, Samuel, bem-vindo. Sim, ele passava o sebo para curtir a varinha ao fogo: secava e dava flexibilidade. Sim, pesquei muito lambari com ela. Abração.

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