Um dia ele apareceu com a calva escalavrada, um sulco
vistoso desde a testa até o alto da cabeça. Então ele tirou as botinas, esticou
os pés para perto da boca do fogão de lenha; macetou um Melhoral, dos que
sempre trazia no bolso da camisa, e tomou com um chá, feito pela filha, com água
quente e açúcar. E contou mais uma das suas aventuras: seguia ele, tranquilo e
displicente, sobre a mulinha, num desvio de terra batida da Fonseca em que não passava há tempos. À frente, uma árvore, um galho rebaixado. Olhou bem, achava
que dava para passar. Calculou errado, não deu. Bem que ainda tentou evitar a
topada, mas a mulinha, espantada com o movimento brusco que ele fez para se
abaixar, apertou o passo e o galho ralou a cabeça dele mais forte ainda. Quase
caiu. Equilibrou-se a custo, mas teve que voltar para pegar o chapéu.
O Vô Zé Pedro era assim. Contava as suas histórias e ria
dele mesmo, de bom humor e de bem com a vida. Era relativamente baixo e usava
camisa branca, de mangas compridas, de tecido grosso. As calças, presas com um
cinturão de couro, eram tradicionalmente amarronzadas, de brim. Nunca o vi com
roupas escuras. Tinha os cabelos brancos, finos e lisos, parcos por conta da
idade. Olhos azuis e pequenos, nariz adunco. A fala, mansa e pausada, tinha por
companhia um gesto amplo: braço e mão se abriam como que apontando o infinito.
Passava as tardes na casa da filha Mariana, papeando
com os netos e com quem aparecesse. Tinha frio nos pés, gostava de beirar o
fogão.
De outra feita chegou reclamando de dor nas costas.
Nem andava direito. E contou sobre uma bezerra, jersinha de raça. Encontrou a dita
morta, no pasto, como que por acaso. Soberbo, nem pediu ajuda: ele mesmo
providenciou o enterro em cova que cavou ao lado da carcaça. Arrastava ela pelas pernas e depois cobria com
a terra solta, me explicou. Mais pesada do que supunha, puxa pelas pernas da
frente, puxa pelas pernas de trás, puxa pelo rabo e pelo pescoço, não estava
fácil. As próprias pernas bambeiam de cansaço, o suor escorre pelo corpo magro.
Desliza a bezerra de lá, desliza o Vô de cá, escorregam os dois, foram ambos para
dentro da cova. Por pouco que não fica preso sob o peso da bezerrinha, no ermo
do pasto. Só com muito esforço é que escapou daquela. Contava e ria. Contava para
fazer rir.
Em tardes de frio intenso ele não aparecia. Então eu caminhava
pela estrada da Grotinha e ia até a Fonseca, no sítio dele. Encontrava-o na sua
casinha, cômodo único, que era só dele, separada da casa propriamente dita. Esquentando
o fogo. Na trempe do fogão, sempre uma caçarola com água aquecida e uma
chaleira no jeito para o chá. Ficava me
esperando para contar causos. Alimentava o fogo e contava da ceva que estava
fazendo, ali no Três Irmãos, nos fundos do quintal. Quando esquentar o tempo, a
gente pega uns lambaris.
Uma vez me presenteou com uma varinha de pesca, que ele
mesmo fez. Colheu a melhor haste do bambuzal, limpou com o canivete de cabo de
osso. Pendurada no beiral do quartinho, com meio tijolo amarrado embaixo, esticou,
tirou a curva da natureza. Por fim, untou com sebo de boi e passou pelo fogo, repetidas
vezes, para dar a leveza e a flexibilidade necessárias para a pesca do lambari.
Pronta em uns quinze ou vinte dias, sem o verdor e com aparência de madura,
caprichada.
Ficou perfeita. Pena que eu não soube conservá-la como
merecia.
Taí! Histórias de bovinos e equinos devemos ter muitas para contar, hein...
ResponderExcluirParte da nossa vida, honrosa vida. Abraços, Celio, e obrigado.
ExcluirE tem aquela da piracema de lambari no rio Lençóis. Nunca vi coisa igual, quando falo dizem que é conversa de pescador.
ResponderExcluirSantino, eu era muito criança na época. Mas me lembro desse episódio. Vale a pena escrever, você que vivenciou o fato. Abraços e obrigado.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQue agonia cair na cova!! 😁😁
ResponderExcluirPois é, mas ele riu muito desse fato. Pessoa muito boa, deixou saudades em todos nós.
ExcluirEssa pescaria rendeu... Sebo de boi? que dica! me trouxe recordações de pescaria no tempo de criança! obrigado pela crônica!
ResponderExcluirOlá, Samuel, bem-vindo. Sim, ele passava o sebo para curtir a varinha ao fogo: secava e dava flexibilidade. Sim, pesquei muito lambari com ela. Abração.
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