O chão da nossa casa brilhava. Dava
gosto olhar o reflexo que vinha da porta da rua. Parecia espelho. Era de um
vermelho vivo. Cimento queimado e alisado com vermelhão, trabalho artístico de
pedreiro das velhas cepas.
Nossa casa era pequena. Me lembro
vagamente, eu ainda era criança, dos quatro cômodos: dois quartos, sala e
cozinha. O telhado, em quatro águas, sobressaia escuro e opressor nas noites de
insônia. O forro de madeira só veio tempos depois e foi pintado de azul.
Nos fundos, do lado de fora, ficavam
o banheiro, com esgoto ligado na rede pública, dois tanques de lavar roupas e
um poço. O poço foi cavado com cinco metros de profundidade, em meio a uma
pedreira. O Seu Luís, da vizinhança, e a mulher dele, Dona Maria, é que se
encarregaram da obra de arte. Suas águas cristalinas abasteceram uma parte da
cidade por longo tempo. Era um entra e sai de mulheres durante as tardes.
Algumas carregavam duas latas, das de 20 litros. Gostava de ver as que
enrolavam um pano branco na cabeça e andavam com destreza, com a lata equilibrada
no alto do cocuruto, em perfeita sincronia com os passos firmes.
Na frente da casa, um jardim modesto,
com algumas roseiras e margaridas. Havia também um pé de mexericas e, por fim,
uma cerca de bambu divisando com a rua. Casa simples, acomodava pai, mãe e
cinco filhos. Com o tempo, foi sendo ampliada, conforme as necessidades e conforme
crescia a prole.
O piso vermelho era mantido a custo
de muito escovão. Escovão de ferro, pesado, que ia e vinha com os braços
fortes da minha mãe. Algumas vezes, ia e vinha com os meus braços, mas não
ficava tão brilhante assim. Primeiro tinha que varrer a poeira.
Depois, vinha a cera, espalhada, de joelhos, nos quatro cômodos. Cera
Parquetina, vermelha e de odor muito forte; corante químico em forma de pasta.
Ou liquefeita, o que era novidade. Vinha numa lata vermelha, redonda, com um
quilo do produto. Um dançarino, com roupas e boné vermelhos, estampava a
embalagem, saltando pelo piso escorregadio e limpo.
Tempos depois, estudante de direito,
ouvi falar em parquet, designando os
membros do Ministério Público. Fui então saber que a referência é antiga, dos
tempos em que os procuradores e os juízes da realeza francesa atuavam sobre um piso
de madeira, um tablado; enfim, sobre o parquet.
Usavam vestes aristocráticas e uma peruca branca adornando a cabeça. O parquet elevava o funcionário, conferia-lhe
status e poder frente aos comuns e rebaixados
mortais.
A moda ficou, e até hoje ouvimos e
lemos essa expressão. E muitos juízes, desembargadores e promotores ainda mantêm
o vezo antidemocrático: atuam sobre um tablado de madeira, e ficam, nas salas
de audiência, em posição superior aos advogados e às partes; quem quiser falar com
eles, que olhe para cima. Não usam a palavra parquete, ou parquê, em bom vernáculo
– a pronúncia francesa deve ser mais chique, imagino. Vestem a toga, uma capa
preta de gosto duvidoso; todavia, pelo menos isso, deixaram a peruca branca de lado,
o que é um avanço.
Pois, então: Cera Parquetina. Encerava
o parquet propriamente dito e
encerava também o piso de cimento da minha casa, o inesquecível vermelhão. Dava
um trabalho danado, mas o resultado era brilhante.
Muitas vezes um pegava o escovão com outro sentado sobre ele, era divertido..
ResponderExcluirPor estes dias, a Matriarca lembrou-se da cera que dava tanto brilho à infância!
Parabéns pelas belas lembranças!
Outros amigos relataram isso. Mas, confesso, essa brincadeira em não fiz. Abração.
ExcluirAh, cada detalhe, tão perfeitamente descrito, que senti até o cheirinho da famosa cera! Meu maior terror era o dia que a mãe dizia que era hora de "raspar" a cera velha, pois o vermelhão
ResponderExcluirjá não estava bonito como ela gostaria!
Evely
A vida era dura, não tínhamos as facilidades de hoje. Mas era uma vida alegre, sem violência e com mais solidariedade. Um forte abraço, Evely, muito obrigado.
ExcluirMorei nessa casa quando o banheiro ainda era um buraco no quintal...
ResponderExcluirQuanto ao poço de águas cristalinas, lembro-me de uma misteriosa cusparada, cuja autoria só foi revelada uns 40 anos mais tarde, o delito já atingido pela prescrição. Parece que estou vendo agora o brilho da Parquetina refletindo a beleza da crônica.
Obrigado, Santino. Não me lembro desse banheiro, mas soube do evento misterioso tempos depois. Quantas histórias ... Abraços.
ExcluirBelas lembranças, Ezinho. Nós 3, mais novos, já pegamos dias melhores que os mais velhos. Nossos banheiros foram logo ligados na rede de esgoto... A menção do Parquet, e o destaque que proporcionava aos seus ocupantes me fez lembrar de alguns fatos. Deles, considero como até natural as mesas da escola do Quitinho, todas elevadas. Mas não me alegra lembrar de um ex-chefe, já nesse século, que usava um parquet "disfarçado", escondidinho atrás de sua mesa, para parecer mais ao alto quando chamava um SUBORDINADO para conversar. E o escovão, ah! o escovão....está bem guardado entre outras recordações lá no ranchino do fundo do quintal. Se lhe der saudades.... Grande abrfaço
ExcluirBom, Celio, usar parquet para encarar o subordinado, na empresa, bom, creio que nunca vi isso... Que coisa!
ExcluirHá como me identifiquei com esses tempos!Me remeteu a minha saudosa Usina Monte Alegre no Sul das Minas Gerais.Porém a cor do cimento era verde o que me frustava muito,pois na casa dos vizinhos era i vermelhão que era mais bonito e aceitava melhor o escovão! Quando chegou o forro,esse sim também era azul e deu uma nova vida em nossa casa!Quanta saudade.Muito obrigado professor Ézio muito bom valorizar o que realmente vale a pena!Os momentos simples ao lado de pessoa especiais.
ResponderExcluirEveraldo, grande cantor de música popular! Solta a voz que só vendo! Sim, gosto reviver a infância, a juventude. Com todas as dificuldades, mesmo assim deixou saudades. Faz parte da nossa vida e não pode ser negada. Um forte abraço, meu querido.
ExcluirO modo simples e verdadeiro, intensificado nos detalhes como é mostrado no conto, transmite sua nostalgia aos leitores, possibilitando-nos uma aproximação com o passado e encontro com sua essência. Parabéns, professor!
ResponderExcluirObrigado, Renan, pelo carinho. É sempre bom lembrar do passado, trabalhar com ele como se fosse presente - creio que o nosso futuro vai ser reflexo de um pouco de tudo isso. Um forte abraço e obrigado pela presença, Renan.
ExcluirLembro-me do chão vermelho e brilhante na casa de minha tia,que saudades. Crônica muito feliz. Parabéns Professor!
ResponderExcluirMuito obrigado. Venha sempre, venha curtir essas lembranças boas da vida.
ExcluirLembro da casa de minha tia, que ainda hoje o chão é de vermelhão.
ResponderExcluirSim, e dá um trabalhão danado para manter esse piso brilhando...
ExcluirAs mulheres carregando as latas com 20 litros de água e a limpeza com o escovão me fez lembrar do trecho do livro, quando Luzia Homem carregava uma parede nas costas e executava tarefas com uma perfeição que os homens não conseguiam.
ResponderExcluirBem lembrado... Quantas delas carregavam lenha para o fogão, quantas carregavam cadeiras nas marcenarias. Quantas latas de água na cabeça... Sim, perfeitas lembranças.
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