O trem que trazia bagagem tinha o prefixo BG;
transporte de cargas e encomendas, de mercadorias em geral. E de correio, que chegava
cedo. De madrugada, o Seu Dito Correiero já estava na estação, esperando, de
bicicleta. Tinha só um vagão de passageiros, o último da composição: metade
primeira classe, com bancos estofados e revestidos de couro vermelho, metade
segunda classe, com bancos de madeira escura. Bancos diferentes na cor, mas
idênticos na rigidez; ambos davam dores nas costas.
O outro era o Mixto, assim mesmo, com x, como se via
escrito nas estações ferroviárias; grafia arcaica, dizem, do latim mixtus. Transportava passageiros e
bagagens.
Gostoso era ver o caboose.
Ou caboso, em nossa pronúncia equivocada. Era o carro-breque, carro de
segurança e de consertos, que fechava as composições, sinalizando o fim do trem.
Vagão especial, vistoso na cor, ele raramente vinha. Tinha um charme raro.
Diferente era o trem com tanques, prateados e
brilhantes ao sol. Por vezes ficava parado, esperando manobras no pátio. Do
quintal de casa víamos a linha férrea, elevada, ao lado do Rio Lençóis, na
outra margem. Apitava estridente; corríamos para o quintal. Ver e contar os
vagões.
Meu pai sabia os horários de cor; transportava a maior
parte das mercadorias. Tocava a carroça para a estação para ganhar o resto da
tarde. Muitas vezes fui junto. Distribuíamos sacos e fardos, em residências e no
comércio. Vinha de um tudo. Os ferroviários compravam os mantimentos do mês na
cooperativa deles, em São Paulo. Chegava pelo BG, em sacos brancos, imaculados.
Famílias inteiras usavam os trens. Meus tios, tias,
primos e primas, chegavam em comitiva; e em comitiva íamos recebê-los, ajudá-los
com malas e sacolas. Avisavam antes, por telegrama. A festa começava na estação
e terminava na casa do meu avô, onde se hospedavam. Vários deles eram
ferroviários.
Nos meados dos anos 1960, a chegada do Mixto
transformava a cidade. Levas incomuns de pedintes e maltrapilhos, que se
espalhavam pelas vilas e pelas ruas centrais, esmolando. Homens e mulheres; crianças,
jovens e velhos, tinham um sotaque diferente. Pediam comida, roupas e o que
mais pudesse socorrer aquela miséria. Era muita gente, todas as tardes, sob o sol
escaldante, atrás de ajutório.
Desciam do Mixto, sacos de estopa nas costas, iam de
porta em porta. E desapareciam no próximo trem que partia. Dia seguinte, chegavam
outros. Foi assim durante um longo tempo, por muitos meses.
Lembranças boas da Sorocabana. Mas também essa lembrança
amarga, triste e dolorida.
Sorocabana... Os trilhos que passavam por Lençóis faziam parte de um ramal que ligava Botucatu a Bauru. A linha tronco, com bitola mais larga, passa por Avaré. Vejo-a com frequência, em completo abandono.
ResponderExcluirMinhas lembranças desse tempo são poucas. Mas frequentei muitas vezes a estação, por conta do trabalho junto com o pai.
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