Ninguém conta ao certo quando aconteceu. Apenas
ficaram sabendo do acontecido. A casa foi visitada pelo Encardido. Lá dentro
ele fez estripulias. Muitas estripulias que nem todas foram contadas. Não uma
vez só, muitas vezes. Pegou costume e foi vindo quando bem queria, conforme lhe
dava na cabeça e não havia quem molestasse o cujo.
Casa de roça, com alpendre e um vasto porão, num
salaminho de terra, fechado para evitar galinhas e patos. Adjacente, num cercado
de bambu, a horta que dava de tudo. O chiqueiro para capados e o curral para
vacas de leite ficavam mais afastados, para o caso do cheiro não atrapalhar. Do lado
da criação, o paiol. Mais no fundo do sítio, na ligeireza do ribeirão, rente à
mata, monjolo e moinho para o fubá do gasto. E muita roça de milho, de feijão,
de cana e de capim.
E o Encardido pegou gosto de frequentar o lugar.
Frequentava sem cerimônia, só pela desordem. A criança, nenê de berço, que de
repente, assim do nada, parava de choramingar: cadê? Podia procurar que
encontrava lá no paiol, sorrindo uma risada diferente no meio do restolho de
palhas e sabugos. Ou aconchegada no cocho do curral. Estava lá, sem nenhum
arranhão, apenas com o riso desusado na cara. Tinha que vigiar o berço,
constante, se não queria o desgosto da busca.
Era bonito, o Encardido. Rapaz de cabelo preto, bem
penteado. Pele amorenada, olhos escuros, abertos e vigilantes. Sempre sorrindo
de malandro. Camisa vermelha e calças pretas, justas no corpo esguio. Não usava
sapatos, não mostrava os chifres e nem o rabo. Nunca era visto de costa; só de
frente.
Rodeava a casa. Fazendo estripulias: com a dona da
casa, com o nenê e com as duas filhas. Se a mais moça ainda estava na janela à
meia-noite, olhando as jabuticabeiras, vendo céu e apontando estrelas, era então
que vinha uma velhinha, de cabelos brancos e roupas escuras, andar suave, olhos
baixos, semicerrados. Vinha silenciosa e lhe entregava uma vela. A moça recebia
a vela e virava as costas, entrava para o quarto e o toco branco já era um osso,
ainda na mão mesmo. Na noite seguinte, a moça tinha que esperar a velhinha na
janela para devolver o osso. Logo à meia-noite, de novo suave e silenciosa, olhos
baixos e semicerrados, a velhinha pegava o osso de volta e desaparecia. Noite
após noite, à meia-noite, numa sucessão de entrega-recebe-devolve. Se não
quisesse, que fosse deitar mais cedo. Se ficasse, tinha que receber e devolver
na noite seguinte. Mesmo contra a ordem do pai, que mandava dormir, imperativo.
Mas a moça não era de obediência, ficava.
Também a filha mais velha ficou tentada por uns
tempos. Na alta madrugada, calada e com as roupas de dormir, pés descalços no
chão frio, cabelos desgrenhados, carregava um grande pilão, do alpendre até o
paiol. Carregava sozinha e sem esforço nenhum. Olhos abertos olhando o infinito,
gestos lentos e medidos. Ia pelo pasto e deixava lá, no paiol. Amanhecido o dia,
o pai tinha que arranjar quatro camaradas, dos mais fortes, para levar o pilão
de volta para o alpendre, pesado que era. Mesmo franzina que só vendo, fazia isso
em silêncio e no dia seguinte não se lembrava do feito. Negava tudo, muito
brava: onde já se viu falar assim de mim? Que eu estava dormindo sossegada a
madrugada inteira! Esconjuro!
A mais velha das filhas nunca se casou; morreu na meia
idade, na casa dos pais. Morreu assim, de repente. Finou no mesmo dia em que o Encardido
sumiu: ele foi visto pela última vez pulando da mó e entrando na mata.
Desapareceu, assobiando alto e descontraído.
No paiol, ficou um cheiro podre e muito forte. Catinga
que enjoa até hoje, não acaba. Mas ele fez ainda muito mais coisas que isso. Coisas
piores e mais feias, que não serão contadas por respeito às incelenças.
São coisas que nem água benta resolve, nem reza braba com arruda e benzedura da Dona Maria Preta.
ResponderExcluirAs benzedeiras... Sim, já tenho algumas coisas rascunhas sobre esse tema. Inesquecíveis. E, olha, não é que sarava mesmo?
ResponderExcluirCurava lombriga, susto e quebranto. Tiro e queda!
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