Postagem em destaque

Sobre o Blog

Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Crônica - Uma visita inesquecível


Ninguém conta ao certo quando aconteceu. Apenas ficaram sabendo do acontecido. A casa foi visitada pelo Encardido. Lá dentro ele fez estripulias. Muitas estripulias que nem todas foram contadas. Não uma vez só, muitas vezes. Pegou costume e foi vindo quando bem queria, conforme lhe dava na cabeça e não havia quem molestasse o cujo.

Casa de roça, com alpendre e um vasto porão, num salaminho de terra, fechado para evitar galinhas e patos. Adjacente, num cercado de bambu, a horta que dava de tudo. O chiqueiro para capados e o curral para vacas de leite ficavam mais afastados, para o caso do cheiro não atrapalhar. Do lado da criação, o paiol. Mais no fundo do sítio, na ligeireza do ribeirão, rente à mata, monjolo e moinho para o fubá do gasto. E muita roça de milho, de feijão, de cana e de capim.
E o Encardido pegou gosto de frequentar o lugar. Frequentava sem cerimônia, só pela desordem. A criança, nenê de berço, que de repente, assim do nada, parava de choramingar: cadê? Podia procurar que encontrava lá no paiol, sorrindo uma risada diferente no meio do restolho de palhas e sabugos. Ou aconchegada no cocho do curral. Estava lá, sem nenhum arranhão, apenas com o riso desusado na cara. Tinha que vigiar o berço, constante, se não queria o desgosto da busca.
Era bonito, o Encardido. Rapaz de cabelo preto, bem penteado. Pele amorenada, olhos escuros, abertos e vigilantes. Sempre sorrindo de malandro. Camisa vermelha e calças pretas, justas no corpo esguio. Não usava sapatos, não mostrava os chifres e nem o rabo. Nunca era visto de costa; só de frente.
Rodeava a casa. Fazendo estripulias: com a dona da casa, com o nenê e com as duas filhas. Se a mais moça ainda estava na janela à meia-noite, olhando as jabuticabeiras, vendo céu e apontando estrelas, era então que vinha uma velhinha, de cabelos brancos e roupas escuras, andar suave, olhos baixos, semicerrados. Vinha silenciosa e lhe entregava uma vela. A moça recebia a vela e virava as costas, entrava para o quarto e o toco branco já era um osso, ainda na mão mesmo. Na noite seguinte, a moça tinha que esperar a velhinha na janela para devolver o osso. Logo à meia-noite, de novo suave e silenciosa, olhos baixos e semicerrados, a velhinha pegava o osso de volta e desaparecia. Noite após noite, à meia-noite, numa sucessão de entrega-recebe-devolve. Se não quisesse, que fosse deitar mais cedo. Se ficasse, tinha que receber e devolver na noite seguinte. Mesmo contra a ordem do pai, que mandava dormir, imperativo. Mas a moça não era de obediência, ficava.
Também a filha mais velha ficou tentada por uns tempos. Na alta madrugada, calada e com as roupas de dormir, pés descalços no chão frio, cabelos desgrenhados, carregava um grande pilão, do alpendre até o paiol. Carregava sozinha e sem esforço nenhum. Olhos abertos olhando o infinito, gestos lentos e medidos. Ia pelo pasto e deixava lá, no paiol. Amanhecido o dia, o pai tinha que arranjar quatro camaradas, dos mais fortes, para levar o pilão de volta para o alpendre, pesado que era. Mesmo franzina que só vendo, fazia isso em silêncio e no dia seguinte não se lembrava do feito. Negava tudo, muito brava: onde já se viu falar assim de mim? Que eu estava dormindo sossegada a madrugada inteira! Esconjuro!
A mais velha das filhas nunca se casou; morreu na meia idade, na casa dos pais. Morreu assim, de repente. Finou no mesmo dia em que o Encardido sumiu: ele foi visto pela última vez pulando da mó e entrando na mata. Desapareceu, assobiando alto e descontraído.
No paiol, ficou um cheiro podre e muito forte. Catinga que enjoa até hoje, não acaba. Mas ele fez ainda muito mais coisas que isso. Coisas piores e mais feias, que não serão contadas por respeito às incelenças.

3 comentários:

  1. São coisas que nem água benta resolve, nem reza braba com arruda e benzedura da Dona Maria Preta.

    ResponderExcluir
  2. As benzedeiras... Sim, já tenho algumas coisas rascunhas sobre esse tema. Inesquecíveis. E, olha, não é que sarava mesmo?

    ResponderExcluir
  3. Curava lombriga, susto e quebranto. Tiro e queda!

    ResponderExcluir