Meu pai foi preso na hora
do almoço, quando eu tinha nove ou dez anos. Dois policiais, fardados e
armados, chegaram de surpresa na porta da cozinha, onde almoçávamos. Passaram
pelo portão de madeira, caminho que ficava aberto para a carroça. Entraram
quintal adentro, deram voz de prisão. De surpresa. Na ponta da mesa, quase que literalmente.
Naquele dia sobrou almoço.
Era o ano de 1967, 1968,
por aí. Um era Policial Militar, o outro era da Polícia Florestal. Dois
policiais que, prenunciando o A.I. 5, se sentiram no direito de achacar pessoas
humildes, trabalhadoras. Carregavam fama de violentos, além das armas. Voz
corrente dizia que batiam em pescadores de beira de rio, quebravam seus
caniços, davam tapas na cara mesmo na frente da mulher e dos filhos. Humilhavam
em nome de uma suposta proteção ambiental. Perseguiam suas vítimas quase que
diariamente, sem procedimentos legais. Escolhiam a dedo.
Cismaram com o meu pai,
perseguição diária e implacável. De motocicleta, seguiam a carroça. Queriam a
legalização do lenheiro, o que significava pagamento de impostos. Mas só para
ele, concorrência desleal para os demais comerciantes. O pai dizia: se for para
todos, muito que bem. Se é só para mim, nada feito! Virou caso pessoal. Muita
pressão na porta de casa; bate-boca na rua. Respostas grossas, palavrão. Nos
coldres oficiais, visíveis eram os 38, pretos. Mas o facão reluzente e afiado
ficava à mostra, na lateral da carroça. Para quem quisesse ver. Ao alcance da
mão, e de boa empunhadura.
O pai foi levado a pé
para a cadeia em lento cortejo, que atravessou a cidade sob o sol escaldante,
que vinha do céu azul e sem nuvens. Meio dia, uma hora da tarde, mais ou menos. Pois que chegaram sem viatura, para não alertar o prisioneiro – mal informados, não sabiam
que o velho não era homem de fugir. Não gostava de autoritarismo; não transigia em
seus direitos.
Lembro bem do susto;
minha mãe se desesperou, chorou. Eu não entendia nada. Meu pai, impassível,
apenas pediu para trocar a roupa corpo, suja do serviço da manhã. Prevenido, espiou pela janela e viu a rua
vazia. Falou para o filho mais velho: estão sem carro; vão me levar a pé; você
corre pela rua de cima e avisa o advogado. Pede ajuda. Nós vamos devagar, que eu
seguro o passo lento.
Permaneceu preso por
algumas horas; uma ordem judicial o libertou pouco antes de ser transferido
para a cadeia de Jaú, uma cidade vizinha. Já estava pronto para uma viagem sem justificativa:
nos anos de chumbo, era de se esperar pelo pior.
Os policiais foram
processados. Arbitrariedades enumeradas e provadas, em série. Um foi
transferido de cidade e o outro perdeu a farda. Para a época, um fim inusitado.
Anos mais tarde, o comércio de lenha foi estabelecido, igual para todos. Justo.
Quando trabalhei como
contínuo no cartório, li o processo em detalhes. Foi meu primeiro contado com a
truculência e o autoritarismo próprios das ditaduras.
Assisti à cena. Sobrou almoço e também desespero, indignação. Impossível não se lembrar da frase de Pedro Aleixo, vice (decorativo) de Costa e Silva no ato da assinatura do AI-5: "Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o País; o problema é o guarda da esquina". Pois é, os guardas da esquina, que, no caso, rima com negação de propina...
ResponderExcluirHá quem presencia e sofre, há quem lê sobre os fatos, há quem ouve dizer... Todos sentem, certamente, a mesma indignação.
ResponderExcluirBem lembrado Ezinho. Carrego esses fatos ainda nítidos na memória. Entendi o que estava o que estava acontecendo, não as razões. A carrocinha parada, os animais ao sol. Sem saber bem o que faEr, corri para a casa do nono. Sem falar tudo, com algumas palavras achei um jeito de fazê-lo descer até em casa. Ele entendeu que havia algum problema…e foi.
ResponderExcluirJusto reconhecer o trabalho de Dr. Waldomiro e do casal Jacon. Especialmente ela que naquela época enfrentou todos os desafios e ameaças, com coragem pouco imaginada para uma mulher numa cidadezinha do interior. Lembrando que um dos fardados tinha um familiar de alta patente…
Que isso Ezio que horror....é esse absurdo que "jamais" poderá voltar... abraço... Marina Borges
ResponderExcluirÉ porisso que acho que apesar da mostra desses quatro anos de mandato caótico, autoritário e abusivo eu creio que as pessoas que continuam a investir nesse inominável não são pessoas ludibriadas e sim da mesma laia e que não defendem a justiça e igualdade do ser humano e sim pessoas imorais, de índole má, tão frias qto os líderes nazistas e fascistas.
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