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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Crônica - Chucrute argentino


O chucrute é um dos meus pratos preferidos. Simples e fácil de ser feito; só requer paciência: com pressa, não chega ao ponto adequado. Gosto do repolho reduzido na panela, em fogo brando, sem a fermentação natural. Acompanhado de joelho de porco e de salsichas, o tempero é completado no prato, com mostarda, amarela ou escura. Simplesmente saboroso.

No início dos anos 1980, bancas de jornal eram incendiadas nas madrugadas; bombas explodiam em shows artísticos: a direita fazia de tudo para evitar a queda ditadura. Uma carta-bomba matou a secretária da OAB, no Rio, Dona Lyda. Mais de 30 atentados, país afora. Um deles, na esquina da minha casa, centro de São Paulo: de manhã, vi a fumaça saindo dos escombros da banca de jornal. Cinzas e ferros retorcidos, restos de livros e de revistas.  As pessoas não paravam, nada comentavam. O medo estava estampado nas caras.
As ditaduras no Cone Sul estavam caindo. Uma noite, na reunião do partido, me veio uma tarefa, a ser cumprida em sigilo: hospedar um casal de argentinos que fugia de Videla, o sanguinário que matou dezenas de milhares de pessoas.
Edu e Mariel desembarcaram na gélida pauliceia no inverno de 1981; ficaram um ano comigo. Obrigatoriamente reclusos, nem à janela saiam. Mariel passava os dias desenhando, tinha excepcional habilidade para isso. Colava os quadros no armário do seu quarto. Edu gostava de ler. Ficamos grandes amigos, conversamos muito. Aprendemos uns com os outros. Choramos e rimos muito. Apenas uma vez saímos juntos para a rua.
Não trouxeram bagagens, tinham as mãos vazias. Sapatos, roupas, comida, enfim, necessitavam de tudo.  Cuia e erva para o mate foram logo providenciadas. Edu pendurava cascas de laranja no varal de roupas, no quintal; depois de secas ao sol, picava pedaços para o fundo da cuia, aromatizando a bebida quente.  
Vieram às pressas de Buenos Aires. Ele era nascido na Província de Entre Rios; ao chegar para o almoço, da esquina viu a viatura da polícia na porta de casa, os agentes conversando com sua mãe. Movimentação estranha, logo entendeu tudo: de cabeça baixa, voltou rápido sobre os próprios passos. Ligou para Mariel, a namorada, que saiu do serviço bem no meio do expediente, sem explicação para ninguém. Em algumas horas estavam juntos em Montevidéu. Mais um dia de viagem e estavam Porto Alegre. Uma semana depois, Edu e Mariel estavam seguros em minha casa, no Bixiga.
Centenas de argentinos foram presos justamente naquele dia em que Edu não entrou em casa para almoçar. Centenas foram torturados e mortos. Quem teve sorte conseguiu escapar. Foram acolhidos em várias cidades brasileiras, de São Paulo para cima. No sul não ficavam, não era seguro. Oficiais argentinos, uruguaios e brasileiros praticavam caçadas naquela região à luz do dia. O governo brasileiro esboçou um endurecimento na lei de estrangeiros, para pegá-los. Vários se casaram em nosso país e escaparam das prisões. Bonita solidariedade dos nossos, e nossas, camaradas.
Mariel era portenha: era militante feminista radical, de uma dureza danada. Brava que só ela. Na pressa, deixou para trás uma filha de seis anos de idade, da qual não se despediu. Nesse tempo, recebeu duas ou três cartas. Nunca eu soube quem as escrevia; o remetente vinha em branco por questão de segurança. No selo postal, o carimbo era de Buenos Aires. Nesses dias Mariel chorava muito; inconsolável, não comia.
Edu me ensinou a fazer o melhor chucrute do mundo. Repolho fatiado fininho, cebola, sal, pimenta do reino, ervas finas e vinagre de vinho branco, refogando aos poucos. Faço até hoje, com elogios vários; é uma das minhas especialidades. Na época era só com salsicha, que o dinheiro não dava para o joelho de porco. Vai bem com cerveja gelada.
Tempos em que Maradona surgia para o mundo; a Guerra das Malvinas se anunciava. E o chucrute entrava em minha vida. Edu e Mariel se salvaram dos voos da morte e, diferente de muitos outros colegas de luta, não foram jogados no Rio da Prata.

15 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Será que tá na hora de aprender a fazer "pabellon criollo" ou a ensinar a fazer feijoada? Ótima crônica, más e boas lembranças...

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    1. Obrigado, Santino, pela vinda. Acho que o pabellon tem cara de coisa boa.

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  3. Que belo texto, comovente e com preciosas lembranças!

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  4. O prato é um clássico saboroso, já a extrema direita- que agora tenta ressurgir das cinzas - é amarga e fora de moda.

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    1. Tem toda razão, Guilherme. Comentário perfeito. Obrigado e abraços.

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  5. Raríssimos textos possuem frases (ou trechos) que me chamam a atenção por uma perfeição singela, uma colocação sutil, um detalhe imperceptível mas imprescindível. Como se a construção frasal passasse a ideia de conclusão de uma cena que sequer foi ventilada expressamente no texto, porque desnecessária. É o caso da parte final de "Milhares de argentinos foram presos justamente naqueles dias em que Edu não entrou em casa para almoçar." Malgrado a gravidade da situação revelada, essa oração carrega uma leveza ímpar. Parabéns, querido mestre!!

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    1. Que bom que você gostou, Wesler. Agradeço muito pelas suas palavras - aliás, você me fez corrigir um plural que estava sobrando na frase. Obrigado, pois. Abração, meu caro amigo.

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  6. Que emoção ao ler tão bem escrito texto. Que alegria tiveram Mariel e Edu por encontrarem asilo em sua casa e você em ter aprendido tão deliciosa receita e tantas outras coisas.

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    1. Obrigado, Beatriz. Sucesso para vocês, que merecem. Abração.

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  7. Chucrute!!! Não sei fazer, mas gosto demais rss. Obviamente, ele foi apenas o chamado de uma lembrança. E você, em linguagem de agradável leitura, nos ofereceu uma bela crônica.
    Percebi que seu blog é novo e, para quem gosta de ler, um caminho interessante. Os meus estão descansando, mas me deram muito prazer.

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    1. Que bom tê-la aqui, Marilene. Saudades. Acompanhei muitas das suas publicações, verdadeira poetisa. Seu texto é leve e fluido, gosto de ler. Um forte abraço.

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  8. Que linda crônica, professor!!! Como sempre ilustrando e nos transportando ao passado a fim de que possamos compreender melhor a história! Emocionante. Parabéns!

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    1. Obrigado, Renan. Um passado triste, de chumbo. Abraços para você.

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