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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Crônica - Capri, c'est fini


Dois trágicos acontecimentos marcaram São Paulo no início dos anos 1970: o incêndio do Edifício Andraus, em 1972, com 16 mortos e mais de 400 feridos, e o incêndio do Edifício Joelma, em 1974, com 179 mortos e cerca de 300 feridos. Acompanhei os dois eventos pela televisão, pelos jornais e pelas revistas da época. Cenas marcantes, que chocaram pela crueldade das mortes.

Quis o destino que, ao mudar-me para São Paulo, cinco anos depois da última dessas tragédias, fosse morar exatamente na esquina do Edifício Andraus. Passava por ele e olhava-o do rés do chão até o alto, sempre com as imagens trágicas guardadas na memória. Passava ali três ou quatro vezes por dia, não tinha como ignorá-lo. Já com o Edifício Joelma, minha relação foi quase nada, no sentido de que raríssimas vezes passei pela sua entrada, na Praça das Bandeiras. O incêndio do Joelma foi mais trágico, mas me marcou de modo diferente, mais pelas coincidências da vida do que propriamente pelo contato com o prédio.
No início dos anos 1970, fiz diversas viagens para São Paulo, a serviço. Saíamos de carro, de madrugada, trabalhávamos o dia todo. No fim da tarde, tomávamos um lanche e uns aperitivos no bar de um estacionamento da Rua Riachuelo, no centro da cidade, exatamente atrás da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Naqueles tempos ainda não se falava em happy hour. Mas era. Depois, à noitinha, pegávamos a estrada de volta para Lençóis.
No bar, havia um cantor que fazia sucesso: negro, magrelo, estatura mediana e muito simpático na interação com o público. Um violonista de mão cheia. Cantava com desenvoltura, em alto e bom som, voz límpida e potente num modesto microfone. Sua voz enchia o saguão, que se enchia de gente para ouvi-lo. Era especialista em músicas italianas e francesas.  Capri, c´est fini era o carro-chefe do seu show: seu vozeirão faria inveja até para Hervé Vilard, compositor da bela canção, que fala de um amor que terminou na Ilha de Capri. Sucesso absoluto no encerramento da apresentação, por volta das oito horas da noite, quando o bar ia se esvaziando.
Voltei ao mesmo bar em várias outras ocasiões, porém não mais encontrei mais o meu cantor preferido. Vários outros se revezavam ao microfone, mas sem o mesmo carisma daquele magrelinho que cantava tão bem. Que pena!
Muitos e muitos anos depois dessas maravilhosas tardes, por volta de 1987, eis que vim a conhecer o Beto, meu cunhado. Comovido, me contou a sua história. História dramática, de sobrevivente do incêndio do Joelma. E eu contei para ele sobre as minhas tardes no bar do estacionamento da Rua Riachuelo. Dessa conversa, então, fiquei sabendo que o Beto também frequentava aquele mesmo bar, e não apenas para uns aperitivos, mas principalmente para acompanhar o seu grande amigo Tadeu, violonista de mão cheia, especialista em músicas italianas e francesas.
Trabalhavam juntos, num escritório do Edifício Joelma; Tadeu, foi o que me contou o Beto, se apresentava nos bares da região, depois do expediente. Apenas voz e violão. Cantava Capri, C´est fini como ninguém, afirmou meu cunhado. E me garantiu que o rapaz tinha voz bonita, límpida e de excelente timbre.
Sim, Beto, eu acredito; eu sei disso, tenho certeza. Pois eu também tive a grata oportunidade de ouvi-lo. Também admirei esse artista. Pois então: o Beto, o Tadeu e eu, nós três, frequentávamos o mesmo local.  Nunca nos falamos e nem sequer nos vimos ali. Coisas da vida. Eu ainda não conhecia o Beto e nem sabia da existência dele.
Enfim, o Beto me contou que o Tadeu foi uma das vítimas fatais do Joelma. Um grupo de amigos desceu pelo último elevador que se abriu no andar em que trabalhavam; o Beto foi literalmente empurrado, espremido, para dentro dele, e assim chegou ao térreo, escapando por pouco. Já o Tadeu não teve a mesma sorte: sem tempo de tomar o elevador, vagou pelos andares em chama e foi resgatado pelos bombeiros. Na descida pela escada magirus, franzino que era, foi pisoteado pelo povo que vinha atrás e quebrou uma perna – e o seu corpo despencou, inerte, no vazio.
Essa música me trás um sentimento muito especial. A última frase dela diz mais ou menos assim: “Capri, eu não acho que voltarei ali um dia. C’est fini”.

9 comentários:

  1. Morava em São Paulo na época dos dois incêndios. Tempos de grana curta, não tínhamos TV, acompanhei tudo pela Jovem Pan AM, que então fazia um ótimo jornalismo, praticamente em tempo real. No caso do Joelma, um amigo de nossa cidade, que trabalhava no edifício, atrasou-se para chegar ao local. Não pôde entrar, pois o incêndio já começara. Anos depois, perdeu a vida em um acidente de trânsito. Parabéns pelo texto, ótimo como sempre.

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    1. Obrigado, Santino. Sim, sei desse caso, muito triste por sinal. Morreu jovem, me lembro bem disso.

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  2. Obrigada mais uma vez, Ezio, por compartilhar de seus belos escritos... Beijo grande!

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  3. Cá do interior de SP acompanhamos tudo numa agonia sem fim. Os relatos, ouvidos pelo rádio, eram dramáticos. E nosso amigo, companheiro meu dos campos de futebol aqui de volta,bom medio voltante que era, teve seu dia de sorte. Teria perdido a hora ou a condução e ficou de fora. Poucos anos depois, aqui pertinhos da gente, deixou a vida num capotamento muito perto da Capela do Corvo. Branco.

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    1. Obrigado, Célio, pela visita. Sim, o Santino postou sobre isso; eu me lembrava do acidente, mas não me lembrava de que ele havia escapado do Joelma. Que pena tudo isso. Coisas da vida que nem temos como explicar. Abraços e obrigado.

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  4. obrigada por compartilhar sua cronica querido professor

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  5. Tragédias nunca são esquecidas. Eu já estava em São Paulo quando do incêndio no Joelma. Ficava traumatizada com as notícias. Nossa! Nem gosto de me lembrar. À época, trabalhava na Nove de Julho. Encontros, desencontros... lembranças muito bem desenvolvidas por você. Abraço.

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