Dois trágicos acontecimentos marcaram
São Paulo no início dos anos 1970: o incêndio do Edifício Andraus, em 1972, com
16 mortos e mais de 400 feridos, e o incêndio do Edifício Joelma, em 1974, com
179 mortos e cerca de 300 feridos. Acompanhei os dois eventos pela televisão,
pelos jornais e pelas revistas da época. Cenas marcantes, que chocaram pela
crueldade das mortes.
Quis o destino que, ao mudar-me para São Paulo, cinco
anos depois da última dessas tragédias, fosse morar exatamente na esquina do
Edifício Andraus. Passava por ele e olhava-o do rés do chão até o alto, sempre com
as imagens trágicas guardadas na memória. Passava ali três ou quatro vezes por
dia, não tinha como ignorá-lo. Já com o Edifício Joelma, minha relação foi
quase nada, no sentido de que raríssimas vezes passei pela sua entrada, na
Praça das Bandeiras. O incêndio do Joelma foi mais trágico, mas me marcou de
modo diferente, mais pelas coincidências da vida do que propriamente pelo
contato com o prédio.
No início dos anos 1970, fiz diversas viagens para São
Paulo, a serviço. Saíamos de carro, de madrugada, trabalhávamos o dia todo. No
fim da tarde, tomávamos um lanche e uns aperitivos no bar de um estacionamento
da Rua Riachuelo, no centro da cidade, exatamente atrás da Faculdade de Direito
do Largo São Francisco. Naqueles tempos ainda não se falava em happy hour. Mas era. Depois, à noitinha,
pegávamos a estrada de volta para Lençóis.
No bar, havia um cantor que fazia sucesso: negro,
magrelo, estatura mediana e muito simpático na interação com o público. Um
violonista de mão cheia. Cantava com desenvoltura, em alto e bom som, voz
límpida e potente num modesto microfone. Sua voz enchia o saguão, que se enchia
de gente para ouvi-lo. Era especialista em músicas italianas e francesas. Capri,
c´est fini era o carro-chefe do seu show: seu vozeirão faria inveja até
para Hervé Vilard, compositor da bela canção, que fala de um amor que terminou
na Ilha de Capri. Sucesso absoluto no encerramento da apresentação, por volta
das oito horas da noite, quando o bar ia se esvaziando.
Voltei ao mesmo bar em várias outras ocasiões, porém
não mais encontrei mais o meu cantor preferido. Vários outros se revezavam ao
microfone, mas sem o mesmo carisma daquele magrelinho que cantava tão bem. Que
pena!
Muitos e muitos anos depois dessas maravilhosas
tardes, por volta de 1987, eis que vim a conhecer o Beto, meu cunhado. Comovido,
me contou a sua história. História dramática, de sobrevivente do incêndio do
Joelma. E eu contei para ele sobre as minhas tardes no bar do estacionamento da
Rua Riachuelo. Dessa conversa, então, fiquei sabendo que o Beto também
frequentava aquele mesmo bar, e não apenas para uns aperitivos, mas
principalmente para acompanhar o seu grande amigo Tadeu, violonista de mão
cheia, especialista em músicas italianas e francesas.
Trabalhavam juntos, num escritório do Edifício Joelma;
Tadeu, foi o que me contou o Beto, se apresentava nos bares da região, depois
do expediente. Apenas voz e violão. Cantava Capri,
C´est fini como ninguém, afirmou meu
cunhado. E me garantiu que o rapaz tinha voz bonita, límpida e de excelente
timbre.
Sim, Beto, eu acredito; eu sei disso, tenho certeza. Pois
eu também tive a grata oportunidade de ouvi-lo. Também admirei esse artista. Pois
então: o Beto, o Tadeu e eu, nós três, frequentávamos o mesmo local. Nunca nos falamos e nem sequer nos vimos ali.
Coisas da vida. Eu ainda não conhecia o Beto e nem sabia da existência dele.
Enfim, o Beto me contou que o Tadeu foi uma das
vítimas fatais do Joelma. Um grupo de amigos desceu pelo último elevador que se
abriu no andar em que trabalhavam; o Beto foi literalmente empurrado, espremido,
para dentro dele, e assim chegou ao térreo, escapando por pouco. Já o Tadeu não
teve a mesma sorte: sem tempo de tomar o elevador, vagou pelos
andares em chama e foi resgatado pelos bombeiros. Na descida pela escada magirus, franzino que era, foi pisoteado
pelo povo que vinha atrás e quebrou uma perna – e o seu corpo despencou, inerte,
no vazio.
Essa música me trás um sentimento muito especial. A última
frase dela diz mais ou menos assim: “Capri, eu não acho que voltarei ali um
dia. C’est fini”.
Morava em São Paulo na época dos dois incêndios. Tempos de grana curta, não tínhamos TV, acompanhei tudo pela Jovem Pan AM, que então fazia um ótimo jornalismo, praticamente em tempo real. No caso do Joelma, um amigo de nossa cidade, que trabalhava no edifício, atrasou-se para chegar ao local. Não pôde entrar, pois o incêndio já começara. Anos depois, perdeu a vida em um acidente de trânsito. Parabéns pelo texto, ótimo como sempre.
ResponderExcluirObrigado, Santino. Sim, sei desse caso, muito triste por sinal. Morreu jovem, me lembro bem disso.
ExcluirObrigada mais uma vez, Ezio, por compartilhar de seus belos escritos... Beijo grande!
ResponderExcluirMuito obrigado pelo carinho. Um forte abraço.
ExcluirCá do interior de SP acompanhamos tudo numa agonia sem fim. Os relatos, ouvidos pelo rádio, eram dramáticos. E nosso amigo, companheiro meu dos campos de futebol aqui de volta,bom medio voltante que era, teve seu dia de sorte. Teria perdido a hora ou a condução e ficou de fora. Poucos anos depois, aqui pertinhos da gente, deixou a vida num capotamento muito perto da Capela do Corvo. Branco.
ResponderExcluirObrigado, Célio, pela visita. Sim, o Santino postou sobre isso; eu me lembrava do acidente, mas não me lembrava de que ele havia escapado do Joelma. Que pena tudo isso. Coisas da vida que nem temos como explicar. Abraços e obrigado.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirobrigada por compartilhar sua cronica querido professor
ResponderExcluirTragédias nunca são esquecidas. Eu já estava em São Paulo quando do incêndio no Joelma. Ficava traumatizada com as notícias. Nossa! Nem gosto de me lembrar. À época, trabalhava na Nove de Julho. Encontros, desencontros... lembranças muito bem desenvolvidas por você. Abraço.
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