Um cidadão sem grandes ambições mudou a história
mundial ao disparar um tiro certeiro contra o então sucessor do Império
Austro-húngaro: o sérvio Gavrilo Princip matava, em junho de 1914, na cidade de
Sarajevo, capital da atual Bósnia e Herzegovina, o arquiduque Francisco
Ferdinando. Foi o primeiro disparo, aquele que iniciou a Primeira Grande Guerra
Mundial.
Os estilhaços desse tiro mataram cerca de nove milhões
de pessoas, aproximadamente. Erich Maria Remarque eternizou essa tragédia na
obra Nada de Novo no Front: o
escritor alemão conta que, quando já não havia mais soldados suficientes e
treinados para guerrear, adolescentes imberbes, aos milhões, eram convocados
para encontrar a morte nas terras dos impérios centrais europeus.
O mundo nunca mais seria o mesmo. Áustria e Hungria se
separaram. No seu entorno, diversas nações, diversas etnias, foram reunidas sob
uma única bandeira: bósnios, croatas, macedônios, eslovenos, montenegrinos e sérvios,
passaram a formar a Iugoslávia, que mais tarde viria a fazer parte da Cortina
de Ferro, como escudo protetor da União Soviética.
Predrag Nikolic,
que, segundo consta, não atirou em ninguém, nasceu iugoslavo, em 1961, numa
cidade da Bósnia e Herzegovina. Enxadrista notável, Grande Mestre, esteve no
Brasil em 1991 para uma série de seis partidas contra Mequinho, que ensaiava um
retorno aos tabuleiros após doze anos sem jogar. Nosso bravo enxadrista, um dos
três melhores do mundo quando no auge da sua carreira, perdeu uma partida e
empatou cinco: feito notável para quem ainda estava debilitado, física e
emocionalmente, por conta de uma miastenia
gravis da qual escapou como que por milagre.
Tive o prazer de ver, no Clube Monte Líbano, em São
Paulo, o último jogo entre ambos, numa tarde de domingo. Ao meu lado, estavam Mário
Henrique Simonsen, que foi um dos gurus da economia na ditadura militar, e sua
mulher, Iluska Simonsen, uma enxadrista de destaque. Mequinho quase perdeu no
relógio, demorou muito para fazer o antepenúltimo lance.
O brasileiro parecia desconectado. Mãos inertes
apertando a cabeça, caras e caretas. Em posição inferior no tabuleiro, ficou praticamente
sem tempo para finalizar a partida. A derrota era certa. Na penumbra do auditório, esfumaçado por conta
dos incontáveis cigarros do casal ministerial, a tensão era imensa. Espera
longa. O tempo se esgotava. E nada do Mequinho jogar. Enfim, depois de muito
refletir, encontrou um lance salvador, que lhe rendeu um inesperado empate logo
na sequência. Os últimos lances foram feitos em velocidade eletrizante. Alívio
da plateia, aplausos gerais. Vivas!
Encerrado o match,
restaram duas situações curiosas: perguntado sobre o motivo da demora em jogar,
o brasileiro respondeu que, na dúvida sobre qual lance efetuar, ficou orando e
pedindo a ajuda de Nossa Senhora. E acrescentou: “Valeu a pena esperar. Ela me
ajudou, me mostrou o lance certo antes do tempo acabar”.
Predrag Nikolic, de sua vez, não teve mais como
retornar ao seu país de origem: a Iugoslávia simplesmente deixara de existir durante
sua estada no Brasil. Os povos antes reunidos sob a bandeira única, agora se
separavam. Eslovênia e Croácia foram os primeiros a proclamar independência,
dando início uma violenta guerra separatista, que duraria alguns anos. O espaço
aéreo local foi fechado, impedindo-o de regressar. Ele saiu de casa como
cidadão iugoslavo, jogou com o Mequinho como iugoslavo e, surpreendido, voltou como
cidadão bósnio – claro, depois de uma prudente espera de algumas semanas em
terras brasileiras.
Mequinho foi eternizado na música Super-Heróis, sucesso de Raul Seixas, ao lado de Pelé, Emerson
Fittipaldi, Paulo Coelho, Silvio Santos, Marlon Brando e do Rei Faiçal, da
Arábia Saudita.
Parabens Grande amigo Ezio!!
ResponderExcluirMuita cultura e boa leitura numa ótima crônica!!
Abração
Obrigado, Everton, um forte abraço.
ExcluirÓtima leitura, agradável e ao mesmo tempo desafiadora. Abraços
ResponderExcluirObrigado. Abraços
ExcluirAdorei e veio bem de encontro com o conteúdo discutido com meus alunos do 3°ano. Se o professor permitir que possa trabalhar o texto com eles, ficarei muito feliz.
ResponderExcluirSim claro. Muito obrigado.
ExcluirA mescla de variados assuntos - história, enxadrismo, crença religiosa, a fumaça que aspirávamos compulsoriamente -, realizada com maestria, mostra-nos quanta desgraça um simples tiro pode causar.
ResponderExcluirEu também colaborava para a fumaça... Obrigado pelo apoio.
ExcluirPodemos sentir a agonia das contendas, tanto a da competição, quanto a das guerras, ao ler sua crônica. Uma beleza, Ezio!
ResponderExcluirOi, Marilene, abraços e obrigado.
ExcluirAos mortos, somemos mais um: o que atira! Esse morre mais, não só de corpo, mas de consciência! Nesta, reside as leis imortais da justiça, imutável e insuscetível de emenda humana, tão divina que abomina a imaginação mundana, daquele que atira, e retira covardemente o folego de uma vida com esta atitude insana! No jogo da guerra ninguém ganha, o 'xeque-mate' é inescapável desde o primeiro lance... Até a essência do 'tabuleiro' fica em "xeque" se em sua gleba, derramar-se uma única gota de sangue...
ResponderExcluirCristiano Duarte aqui mestre, o servidor não está logando. Parabéns, excelente crônica!
ExcluirVerdade! Belas e sábias palavras. Abração.
ExcluirAos mortos, somemos mais um: o que atira! Esse morre mais, não só de corpo, mas de consciência! Nesta, reside as leis imortais da justiça, imutável e insuscetível de emenda humana, tão divina que abomina a imaginação mundana, daquele que atira, e retira covardemente o folego de uma vida com esta atitude insana! No jogo da guerra ninguém ganha, o 'xeque-mate' é inescapável desde o primeiro lance... Até a essência do 'tabuleiro' fica em "xeque" se em sua gleba, derramar-se uma única gota de sangue...
ResponderExcluirVerdade! Belas e sábias palavras.
Excluirmuito bom, vivendo e aprendendo!
ResponderExcluirObrigado, Silas, grande abraço. Vamos jogar uma, qualquer hora dessas.
ExcluirMistura fina...
ResponderExcluirOi, Celio, muito obrigado pela leitura. A minha mistura não sei é lá das mais finas... mas o Mistura Fina fumaçava, assim como o du Maurier - se é assim que se escreve. Abraços.
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