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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

sexta-feira, 8 de março de 2019

Crônica - O céu da pátria


Um cidadão sem grandes ambições mudou a história mundial ao disparar um tiro certeiro contra o então sucessor do Império Austro-húngaro: o sérvio Gavrilo Princip matava, em junho de 1914, na cidade de Sarajevo, capital da atual Bósnia e Herzegovina, o arquiduque Francisco Ferdinando. Foi o primeiro disparo, aquele que iniciou a Primeira Grande Guerra Mundial.

Os estilhaços desse tiro mataram cerca de nove milhões de pessoas, aproximadamente. Erich Maria Remarque eternizou essa tragédia na obra Nada de Novo no Front: o escritor alemão conta que, quando já não havia mais soldados suficientes e treinados para guerrear, adolescentes imberbes, aos milhões, eram convocados para encontrar a morte nas terras dos impérios centrais europeus.
O mundo nunca mais seria o mesmo. Áustria e Hungria se separaram. No seu entorno, diversas nações, diversas etnias, foram reunidas sob uma única bandeira: bósnios, croatas, macedônios, eslovenos, montenegrinos e sérvios, passaram a formar a Iugoslávia, que mais tarde viria a fazer parte da Cortina de Ferro, como escudo protetor da União Soviética.
 Predrag Nikolic, que, segundo consta, não atirou em ninguém, nasceu iugoslavo, em 1961, numa cidade da Bósnia e Herzegovina. Enxadrista notável, Grande Mestre, esteve no Brasil em 1991 para uma série de seis partidas contra Mequinho, que ensaiava um retorno aos tabuleiros após doze anos sem jogar. Nosso bravo enxadrista, um dos três melhores do mundo quando no auge da sua carreira, perdeu uma partida e empatou cinco: feito notável para quem ainda estava debilitado, física e emocionalmente, por conta de uma miastenia gravis da qual escapou como que por milagre.
Tive o prazer de ver, no Clube Monte Líbano, em São Paulo, o último jogo entre ambos, numa tarde de domingo. Ao meu lado, estavam Mário Henrique Simonsen, que foi um dos gurus da economia na ditadura militar, e sua mulher, Iluska Simonsen, uma enxadrista de destaque. Mequinho quase perdeu no relógio, demorou muito para fazer o antepenúltimo lance.
O brasileiro parecia desconectado. Mãos inertes apertando a cabeça, caras e caretas. Em posição inferior no tabuleiro, ficou praticamente sem tempo para finalizar a partida. A derrota era certa.  Na penumbra do auditório, esfumaçado por conta dos incontáveis cigarros do casal ministerial, a tensão era imensa. Espera longa. O tempo se esgotava. E nada do Mequinho jogar. Enfim, depois de muito refletir, encontrou um lance salvador, que lhe rendeu um inesperado empate logo na sequência. Os últimos lances foram feitos em velocidade eletrizante. Alívio da plateia, aplausos gerais. Vivas!
Encerrado o match, restaram duas situações curiosas: perguntado sobre o motivo da demora em jogar, o brasileiro respondeu que, na dúvida sobre qual lance efetuar, ficou orando e pedindo a ajuda de Nossa Senhora. E acrescentou: “Valeu a pena esperar. Ela me ajudou, me mostrou o lance certo antes do tempo acabar”.
Predrag Nikolic, de sua vez, não teve mais como retornar ao seu país de origem: a Iugoslávia simplesmente deixara de existir durante sua estada no Brasil. Os povos antes reunidos sob a bandeira única, agora se separavam. Eslovênia e Croácia foram os primeiros a proclamar independência, dando início uma violenta guerra separatista, que duraria alguns anos. O espaço aéreo local foi fechado, impedindo-o de regressar. Ele saiu de casa como cidadão iugoslavo, jogou com o Mequinho como iugoslavo e, surpreendido, voltou como cidadão bósnio – claro, depois de uma prudente espera de algumas semanas em terras brasileiras.
Mequinho foi eternizado na música Super-Heróis, sucesso de Raul Seixas, ao lado de Pelé, Emerson Fittipaldi, Paulo Coelho, Silvio Santos, Marlon Brando e do Rei Faiçal, da Arábia Saudita.







19 comentários:

  1. Parabens Grande amigo Ezio!!
    Muita cultura e boa leitura numa ótima crônica!!
    Abração

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  2. Ótima leitura, agradável e ao mesmo tempo desafiadora. Abraços

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  3. Adorei e veio bem de encontro com o conteúdo discutido com meus alunos do 3°ano. Se o professor permitir que possa trabalhar o texto com eles, ficarei muito feliz.

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  4. A mescla de variados assuntos - história, enxadrismo, crença religiosa, a fumaça que aspirávamos compulsoriamente -, realizada com maestria, mostra-nos quanta desgraça um simples tiro pode causar.

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    1. Eu também colaborava para a fumaça... Obrigado pelo apoio.

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  5. Podemos sentir a agonia das contendas, tanto a da competição, quanto a das guerras, ao ler sua crônica. Uma beleza, Ezio!

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  6. Aos mortos, somemos mais um: o que atira! Esse morre mais, não só de corpo, mas de consciência! Nesta, reside as leis imortais da justiça, imutável e insuscetível de emenda humana, tão divina que abomina a imaginação mundana, daquele que atira, e retira covardemente o folego de uma vida com esta atitude insana! No jogo da guerra ninguém ganha, o 'xeque-mate' é inescapável desde o primeiro lance... Até a essência do 'tabuleiro' fica em "xeque" se em sua gleba, derramar-se uma única gota de sangue...

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    1. Cristiano Duarte aqui mestre, o servidor não está logando. Parabéns, excelente crônica!

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    2. Verdade! Belas e sábias palavras. Abração.

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  7. Aos mortos, somemos mais um: o que atira! Esse morre mais, não só de corpo, mas de consciência! Nesta, reside as leis imortais da justiça, imutável e insuscetível de emenda humana, tão divina que abomina a imaginação mundana, daquele que atira, e retira covardemente o folego de uma vida com esta atitude insana! No jogo da guerra ninguém ganha, o 'xeque-mate' é inescapável desde o primeiro lance... Até a essência do 'tabuleiro' fica em "xeque" se em sua gleba, derramar-se uma única gota de sangue...

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    1. Obrigado, Silas, grande abraço. Vamos jogar uma, qualquer hora dessas.

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  9. Respostas
    1. Oi, Celio, muito obrigado pela leitura. A minha mistura não sei é lá das mais finas... mas o Mistura Fina fumaçava, assim como o du Maurier - se é assim que se escreve. Abraços.

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