O magistral e excêntrico Wilhelm Steinitz não era do meu tempo: só o conheço pelas histórias que ouço e leio. Nasceu em 1836, em Praga, ainda sob a bandeira do Império Austro-húngaro, e se interessou pelo xadrez apenas aos 23 anos de idade – caso raro em meio à precocidade dos grandes campeões. Steinitz foi oficialmente reconhecido como o primeiro campeão mundial de xadrez quando, no ano de 1886, derrotou o polonês Johannes Zukertot no jogo final de um grande torneio que reuniu os melhores enxadristas então conhecidos.
Steinitz também foi o primeiro grande mestre a estudar e difundir o xadrez posicional, metódico e calculado.
O Mestre Jeremias, meu amigo e também
enxadrista de boa cepa, nos brinda com excelentes histórias a respeito dele.
Como essa: já no fim da vida e internado numa clínica psiquiátrica, Steinitz
dizia que jogava, todas as manhãs, uma partida de xadrez com Deus. Jogava com
um peão a menos, dava dois lances de vantagem e ainda assim vencia o Criador.
Todas as manhãs, afirmava ele. Até que, entediado com estas vitórias, perdeu o
interesse pelos confrontos e nunca mais jogou, abandonando de vez os tabuleiros.
Steinitz morreu louco,
em 1900, em Nova Iorque, onde se achava radicado, deixando a família na mais
absoluta miséria. Não viveu o suficiente para ver sua pátria, a
Tchecoslováquia, livre das amarras imperiais - mas parece que isto não incomodava o grande enxadrista.
Trajetória diferente
teve o russo Viktor Korchnoi: não conseguiu ser campeão mundial, mas,
felizmente, não enlouqueceu. Teve uma das carreiras mais longevas do
enxadrismo. Tive a satisfação de vê-lo jogar, em 1979, no Torneio Internacional
da Cidade de São Paulo. De porte elegante, com seu inseparável e fumegante
cachimbo, Korchnoi movimentava uma peça e saia pelo salão, sempre olhando com
curiosidade o inquieto público paulistano.
Na
tarde em que o brasileiro Antonio Rocha conseguiu os pontos necessários para
ganhar a norma de Mestre Internacional, a plateia prorrompeu em gritos e longos
aplausos. Ao fundo, foi possível ver Korchnoi em choque, não acreditando na
ruidosa festa que se fazia em meio à disputa. De queixo caído, só não lhe caiu
o cachimbo porque estava firmemente preso em sua mão direita.
Nascido
em Leningrado, em 1931, Korchnoi criticava severamente a Federação Russa de
Xadrez, acusando-a de proteger alguns jogadores que defendiam o sistema
soviético. Em 1976, exilou-se na Holanda e, em seguida, na Alemanha Oriental;
logo depois renunciou à cidadania russa e se declarou apátrida; por fim, fixou
residência na Suíça, país que o acolheu e lhe concedeu cidadania.
Korchnoi
dizia sofrer represálias e perseguições da KGB, por conta de suas posturas
políticas. Em 1978, por exemplo, durante um match
acirrado contra o russo Anatole Karpov, Korchnoi cismou que o adversário e seus
assistentes tentavam lhe hipnotizar. Foi então que adotou uma solução no mínimo
curiosa: passou a jogar de óculos espelhados, dizendo que, com isso, os
adversários se auto-hipnotizariam ... Grande
Victor Korchnoi! Morreu em 2016, aos 85 anos de idade, quando ainda jogava
xadrez em altíssimo nível.
Um
dia eu contei para o amigo Tads, culto e erudito professor de Direito Penal, a
história do Korchnoi; falei sobre a sua renúncia à cidadania russa e tal e
coisa. Tads, entre surpreso, incrédulo e jocoso, me perguntou de pronto:
-
Apátrida!? Existe isso!?
Não
sei dizer, professor, se isso existe ou não existe. Sei apenas que existiram grandes
gênios do tabuleiro, que fizeram história.
Ótima crónica, Professor
ResponderExcluirObrigado, Tadeu. Esse é um jogador de primeiríssima linha, jogador muito forte e difícil de ser vencido. Abraços.
ExcluirMais um excelente texto, com histórias curiosas que os jornais não contam. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado, Santino. Algumas histórias vão passando de boca em boca. Abraços.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirGrande Samuel, enxadrista da hora. Abraços.
ExcluirDemais!!
ResponderExcluirAdorei
ResponderExcluirNao sou enxadrista e demorei um pouco para entender a dinâmica deste que muitos identificam como um "jogo" e que para mim é um desafio de vida e de vidas, especialmente quando acontece em esferas das altas habilidades. O seu texto, mostra que existem pessoas e suas realidades no cenário das jogadas de Mestres. Parabéns!
ResponderExcluirSim, xadrez é um jogo: como competição, como disputa, com campeonatos no âmbito mundial, com muito investimentos financeiros; mas também é uma ciência, que demanda muitos e criteriosos estudos, desenvolvimento de estratégias e de um sem-número de teorias, com uma produção bibliográfica das maiores dentre as diversas atividades humanas. Por fim, xadrez é uma arte: os lances são artísticos, rebuscados, pensados e muitas vezes surpreendentes, lindos de se ver. Forte abraço - venha sempre!
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