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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

domingo, 24 de março de 2019

Crônica - O céu do apátrida


            O magistral e excêntrico Wilhelm Steinitz não era do meu tempo: só o conheço pelas histórias que ouço e leio. Nasceu em 1836, em Praga, ainda sob a bandeira do Império Austro-húngaro, e se interessou pelo xadrez apenas aos 23 anos de idade – caso raro em meio à precocidade dos grandes campeões. Steinitz foi oficialmente reconhecido como o primeiro campeão mundial de xadrez quando, no ano de 1886, derrotou o polonês Johannes Zukertot no jogo final de um grande torneio que reuniu os melhores enxadristas então conhecidos.
Steinitz também foi o primeiro grande mestre a estudar e difundir o xadrez posicional, metódico e calculado.
O Mestre Jeremias, meu amigo e também enxadrista de boa cepa, nos brinda com excelentes histórias a respeito dele. Como essa: já no fim da vida e internado numa clínica psiquiátrica, Steinitz dizia que jogava, todas as manhãs, uma partida de xadrez com Deus. Jogava com um peão a menos, dava dois lances de vantagem e ainda assim vencia o Criador. Todas as manhãs, afirmava ele. Até que, entediado com estas vitórias, perdeu o interesse pelos confrontos e nunca mais jogou, abandonando de vez os tabuleiros.
Steinitz morreu louco, em 1900, em Nova Iorque, onde se achava radicado, deixando a família na mais absoluta miséria. Não viveu o suficiente para ver sua pátria, a Tchecoslováquia, livre das amarras imperiais - mas parece que isto não incomodava o grande enxadrista.
Trajetória diferente teve o russo Viktor Korchnoi: não conseguiu ser campeão mundial, mas, felizmente, não enlouqueceu. Teve uma das carreiras mais longevas do enxadrismo. Tive a satisfação de vê-lo jogar, em 1979, no Torneio Internacional da Cidade de São Paulo. De porte elegante, com seu inseparável e fumegante cachimbo, Korchnoi movimentava uma peça e saia pelo salão, sempre olhando com curiosidade o inquieto público paulistano.
 Na tarde em que o brasileiro Antonio Rocha conseguiu os pontos necessários para ganhar a norma de Mestre Internacional, a plateia prorrompeu em gritos e longos aplausos. Ao fundo, foi possível ver Korchnoi em choque, não acreditando na ruidosa festa que se fazia em meio à disputa. De queixo caído, só não lhe caiu o cachimbo porque estava firmemente preso em sua mão direita.
 Nascido em Leningrado, em 1931, Korchnoi criticava severamente a Federação Russa de Xadrez, acusando-a de proteger alguns jogadores que defendiam o sistema soviético. Em 1976, exilou-se na Holanda e, em seguida, na Alemanha Oriental; logo depois renunciou à cidadania russa e se declarou apátrida; por fim, fixou residência na Suíça, país que o acolheu e lhe concedeu cidadania.
 Korchnoi dizia sofrer represálias e perseguições da KGB, por conta de suas posturas políticas. Em 1978, por exemplo, durante um match acirrado contra o russo Anatole Karpov, Korchnoi cismou que o adversário e seus assistentes tentavam lhe hipnotizar. Foi então que adotou uma solução no mínimo curiosa: passou a jogar de óculos espelhados, dizendo que, com isso, os adversários se auto-hipnotizariam ...  Grande Victor Korchnoi! Morreu em 2016, aos 85 anos de idade, quando ainda jogava xadrez em altíssimo nível.
 Um dia eu contei para o amigo Tads, culto e erudito professor de Direito Penal, a história do Korchnoi; falei sobre a sua renúncia à cidadania russa e tal e coisa. Tads, entre surpreso, incrédulo e jocoso, me perguntou de pronto:
 - Apátrida!? Existe isso!?
 Não sei dizer, professor, se isso existe ou não existe. Sei apenas que existiram grandes gênios do tabuleiro, que fizeram história.

10 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigado, Tadeu. Esse é um jogador de primeiríssima linha, jogador muito forte e difícil de ser vencido. Abraços.

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  2. Mais um excelente texto, com histórias curiosas que os jornais não contam. Parabéns!

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    1. Obrigado, Santino. Algumas histórias vão passando de boca em boca. Abraços.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Nao sou enxadrista e demorei um pouco para entender a dinâmica deste que muitos identificam como um "jogo" e que para mim é um desafio de vida e de vidas, especialmente quando acontece em esferas das altas habilidades. O seu texto, mostra que existem pessoas e suas realidades no cenário das jogadas de Mestres. Parabéns!

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    1. Sim, xadrez é um jogo: como competição, como disputa, com campeonatos no âmbito mundial, com muito investimentos financeiros; mas também é uma ciência, que demanda muitos e criteriosos estudos, desenvolvimento de estratégias e de um sem-número de teorias, com uma produção bibliográfica das maiores dentre as diversas atividades humanas. Por fim, xadrez é uma arte: os lances são artísticos, rebuscados, pensados e muitas vezes surpreendentes, lindos de se ver. Forte abraço - venha sempre!

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