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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

sábado, 13 de abril de 2019

Crônica - Céu de estrelas


Jack Dempsey, norte-americano, caiu com um potente soco que levou no queixo. Quem conta é Martín Kohan, em Segundos fora, da Companhia das Letras: caiu em câmera lenta, com o corpo projetado para trás. Seus olhos foram se fechando durante a longa e demorada queda, mas ainda teve tempo de ver que caia por entre as cordas do ringue: estatelou-se no chão duro e frio do ginásio Polo Grounds, de Nova Iorque, na remota noite de 14 de setembro de 1923.
           O responsável pelo potente soco foi o argentino Luis Angel Firpo, numa disputa pelo título mundial de boxe dos pesos pesados. Pela narrativa de Martín Kohan, o combate foi eletrizante, mas curto: Firpo foi nocauteado sete vezes no primeiro assalto e se levantou sete vezes para, inesperadamente e ainda nesse mesmo round, jogar Dempsey para fora do ringue. No segundo assalto, enfim, Dempsey, refeito e de olhos bem abertos, nocauteou Firpo outras duas vezes: venceu a luta e manteve a coroa máxima da categoria. Naquela noite memorável, os dois pugilistas viram estrelas.
Já o maior boxer de todos os tempos, Mohamad Ali, permaneceu de olhos abertos mesmo quando foi derrotado, em 02 de outubro de 1980, por Larry Holmes. Essa luta, mais recente, eu vi pela televisão, num começo de madrugada. Foi a única vez que Ali, em sua longa e vitoriosa carreira, não lutou até o fim.
Valente e destemido, o grande campeão se recusou a cair naquela noite dolorida. Estava com 38 anos de idade e provavelmente já sentia os efeitos do Mal de Parkinson; todavia, permaneceu lúcido o tempo todo, com o olhar fixo no adversário. Exausto, abandonou a luta no décimo assalto, reconhecendo a superioridade de Holmes.
Mohamad Ali nasceu no Kentucki. Nasceu como Cassius Marcellus Clay Júnior e só mais tarde é que adotou o islamismo e o novo nome, com o qual se consagraria. E fez história, defendendo os negros, ao lado de Martin Luther King. Num gesto supremo, recusou-se a lutar no Vietnã porque, dizia ele, não via motivos para jogar bombas sobre uma população pobre e que nem sequer conhecia.
E dizia mais: que o inimigo a ser combatido era a supremacia branca que, dentro do seu próprio país, tratava os negros como cachorros. Processado e condenado à prisão, teve que pagar pesada fiança para não ser preso. Perdeu a licença para lutar e foi despojado do título mundial.
Mais tarde, em volta triunfante, reconquistaria a coroa que por justiça lhe pertencia. Mohammad Ali foi uma estrela de primeira grandeza.
Quem também mantinha os olhos abertos era o monge Jorge de Burgos, bibliotecário-mor de O nome da rosa, de Umberto Eco, da Editora Record. Era o responsável pelo rico acervo da biblioteca do mosteiro em que foi ambientada a obra prima do autor italiano.
Jorge de Burgos era cego; nada enxergava e, portanto, não via estrelas. Conhecia de memória todos os volumes da ampla coleção do mosteiro e cuidava para que alguns, que julgava impróprios, não fossem lidos. Caminhava com precisão por todos os cantos do labirinto em que se constituía a ampla biblioteca e sabia a localização de cada livro do lugar. Foi com esse personagem que Umberto Eco homenageou o escritor argentino Jorge Luis Borges, igualmente cego.
Consta que Borges não ganhou o Prêmio Nobel por causa de suas posições politicas conservadoras. Era festejado como literato, mas não enxergava as veias abertas da América Latina e nem os séculos de nossa solidão. Não tinha os olhos de Eduardo Galeano e nem os de Garcia Marques.
Para mim, Borges não brilhava; mas, enfim, foi homenageado pelo personagem erudito que desempenhava o papel de guardião e de censor da fictícia biblioteca medieval de Umberto Eco.
Martín Kohan é relativamente jovem e dá aulas na Universidade de Buenos Aires. Larry Holmes, beirando os 70 anos, pouco aparece em público. Os outros já viraram estrelas e pairam em algum canto da nossa galáxia – até Borges, talvez.

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