Esperava paciente há umas duas horas, aproximadamente. Na sala branca,
acarpetada, eu e mais alguns poucos, todos homens de meia idade, agasalhados,
ocupávamos os já gastos sofás de couro,
outrora mobiliário fino. Sons de máquina de escrever, vindos de muito longe,
era apenas o que se ouvia.
Os outros chegaram depois de mim e não trocamos nem boa tarde. Uma janela
de vidro era nosso único contato com o exterior. Por ela divisávamos um pequeno
jardim nos fundos do prédio, o gramado encharcado e algumas rosas em botão
balançando frias na tarde gelada e precocemente escurecida.
A espera, apesar de longa, não era propriamente nervosa. Mas uma
angústia, por certo, dominava a todos nós, a julgar pelo ar bucólico que emanava
dos vários semblantes. Imagino que a minha cara não era diferente. A impotência
e a tristeza nos dominavam.
Toda vestida de branco e com uma delicadeza característica, uma possível
secretária, vez por outra, quebrava o silêncio e tratava de justificar o
atraso, pois, dizia ela, sempre um imprevisto pode ocorrer, o tempo não tem
ajudado muito, o trânsito sempre piora com a chuva, quem sabe um pneu furado,
isso e aquilo. Palavras ditas com serenidade, mas que chegavam pontiagudas e
furavam nossos tímpanos. Como ninguém lhe desse ouvidos, quero dizer, como
ninguém lhe respondia, então se calava. Daí a pouco recomeçava, de repente
parava de novo... Ninguém lhe dava atenção. Creio mesmo que todos nós, no
íntimo, desejávamos a demora.
Quando a chuva tornou-se mais amena, quase garoa, o vento recrudesceu e
pela janela eu vi nuvens carregadas no céu. Foi quando, enfim, chegou um homem,
bem asseado e com gomalina segurando os cabelos pretos e lisos, esticados para
trás. Tinha uma pastinha marrom numa das mãos; na outra, trazia um guarda-chuva
ainda pingando. Acenou discretamente para a secretária e dirigiu-se para trás
de uma porta que eu não tinha notado até então. Apreensivos, nos remexemos sobre
os sofás.
Fui o primeiro a ser chamado. O homem não me disse nada, nenhum
cumprimento e nenhuma palavra. De modo maquinal e frio, puxou um gavetão de
metal, com um barulho estridente. Notei que eram muitos gavetões, que saiam de
todas as quatro paredes daquele enorme salão. De cada um deles pendia uma
plaquinha, com números e siglas.
- Reconhece? – me perguntou.
- Parece... O anel no dedinho é igual. O rosto não era bem assim, era
mais fino; mas, quem sabe? O inchaço é normal agora. Pele clara, altura,
cabelos, tudo confere ...
Um cheiro repugnante de formol me invadiu. Minhas narinas arderam.
Difícil de suportar.
- O que mais? – quis saber o homem de gomalina no cabelo.
Tentei ao menos respirar. E perguntei, sem nem pensar direito:
- Posso ver pelas costas? É para ter uma velha cicatriz, quatro ou cinco
centímetros. Foi briga de rua. Coisa de mocidade, o senhor compreende, não?
Disse isso por dizer, mas nem esperei resposta. Virei-me e saí do salão
antes que alguém erguesse aquilo. Por que insistir?
Concluí que nada mais me restava senão preparar rapidamente a papelada e
mandar sepultar logo aquele corpo.
O texto cria uma expectativa e prende a atenção, mas não esperava se tratar de algo tão triste, mas que é realidade.
ResponderExcluirAbração, caro Marcos do Prado. Volte sempre. Saúde e alegria.
ExcluirAlgumas pessoas marcam a nossa vida, deixam mensagens que nunca se apagam das nossas mentes, que se tornam aprendizados que levamos para sempre conosco.
ResponderExcluirE nem sempre é por meio das palavras que aprendemos. Ética, generosidade, amizade e humildade são atitudes e qualidades que se veem nas ações, e que ficam de exemplo e inspiração.
Professor, você foi uma das pessoas mais marcantes em toda a minha formação. Foi alguém que me fez repensar o meu lugar no mundo, e a importância do meu modo de estar no mundo. Eu o admiro profundamente e tenho uma grande estima pela sua pessoa.
Parabéns, professor! O senhor foi e sempre será meu espelho!
Abraços, meu caro Kássio - sim, Kássio com "K". Palavras emocionantes e que por certo não mereço nem metade delas. Saudades.
ExcluirSeus textos, Ezinho, sempre têm a capacidade de me fazer recordar algo meio adormecido na mente. O homem nem cumprimentou ninguém, não é? Pois isso me faz recordar o dia em que fui intimado como testemunha em um processo qualquer, daqueles de origem empresarial, numa cidade não muito longe da minha. Tudo igual. Várias pessoas sentadas ao redor e eu ali, com microfones e câmera à minha frente. Um silêncio sepulcral. Não de velório, que não existe. De repente ouço ao longe um som de salto alto agredindo o piso do fórum como ferradura (por que será que muitas mulheres de fórum gostam tanto disso?) Toc.toc. toc. ...De repente entra a Juíza, não olha para ninguém, nem sequer um boa tarde e um obrigado pela espera. Senta-se na cadeira com pouca delicadeza e, me chamando pelo nome, faz uma pergunta. Respondo, ela dita algo para o seu escrevente (acho que é isso)e simplesmente se retira da sala. Pouca educação assim nunca vi. Ah, ia me esquecendo de elogiar o seu texto, agradávelcomo sempre.
ResponderExcluirObrigado, Célio. Como já tive oportunidade de dizer, essas grosserias ainda persistem, o que é de se lamentar - e mais lamentável ainda que quando ocorrem em ambientes públicos pensados, criados e pagos com o nosso dinheiro para servirem à população. Absoluta falta de respeito de quem seria de se esperar exatamente o contrário. Abraços, meu irmão.
ExcluirUm texto que nos prende a atenção, nos instiga a curiosidade em querer ver o desfecho da situação, novamente, parabéns professor Ezio, é uma honra poder se deliciar com uma escrita tão atrativa.
ResponderExcluirParabéns Ezinho! Muito bom!
ResponderExcluirWando, meu caro amigo, muito obrigado pela leitura. É sempre bem-vindo. Abraços.
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