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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Crônica - Os anos que não terminaram

Em dezembro de 1968 o astronauta Willian Anders fotografou a terra a partir da Apolo 8, no exato momento em que orbitava a lua. A imagem, bonita e de um ângulo até então inédito, correu o mundo. No Brasil, ilustrou a capa da Revista Manchete e assim chegou até Caetano Veloso, que se encontrava preso num quartel do exército no Realengo, Rio de Janeiro. Inspirado nessa foto, o músico baiano viria a criar lindos versos: “Quando eu me encontrava preso / na cela de uma cadeia / foi que vi pela primeira vez / as tais fotografias / em que apareces inteira / Porém lá não estavas nua / e sim coberta de nuvens”. Terra, terra, terra!

Caetano e Gil foram presos em 27 de dezembro de 1968. Foram presos porque cantavam a alegria de viver, porque se recusavam a viver nas trevas que nos impunham. Pagaram caro pela genialidade artística e pela ousadia libertária que insistiam em expor ao mundo. Meses depois, no início de 1969, ambos seguiriam para o exílio, em Londres, para não serem torturados e mortos pelo regime de terror que se espalhava pelo Cone Sul.
De Londres, onde ambos ficaram até 1972, vieram maravilhas: “London, London”, de Caetano, talvez seja a mais bonita delas. Roberto Carlos esteve lá, em visita à dupla, e foi recebido em toda a sua realeza. Em troca da gentil recepção, o Rei nos legou “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos / uma história para contar / de um mundo tão distante / debaixo dos caracóis dos seus cabelos / um soluço e a vontade / de ficar mais um instante”. Prova da solidariedade do Rei aos músicos brasileiros; ao Caetano, mais especificamente.
Numa noite de 1969, foi que pela primeira vez meu pai me convidou para ver televisão com ele. Era uma Philco, talvez. Tinha uma série de botões, era de madeira e com um tubo grande atrás dela; transmitia chuviscos em branco e preto, com ruídos e distorções incontroláveis. Durante o dia, subi no telhado para virar a antena de um lado para o outro, enquanto, embaixo, verificavam a estabilidade das imagens. Vira mais! Aí. Para! Não, volta um pouco, um pouco mais. Esse esforço não resolveu muito; foi preciso esticar um bombril a partir da entrada da antena para melhorar a recepção. E foi assim que eu vi, na excelente companhia paterna, o destemido Neil Armstrong caminhando pela lua.
Em novembro do mesmo ano, 1969, um segundo convite do meu pai: ficar acordado para ver o Pelé marcar o milésimo. Fiquei – e vi esse outro Rei, o Eterno Rei Pelé, botar a bola fora do alcance do goleiro vascaíno, numa magistral cobrança de pênalti. Uma festa em casa, naquela noite.
Armstrong e Pelé se tornariam célebres pelos feitos inéditos. Roberto, Caetano e Gil são poetas imortais. Mas aqueles dias foram de dores profundas; de prisões, de torturas e de assassinatos, na esteira do A.I. 5, um monstrengo que oficializou uma série de crimes praticados pelo Estado e que até hoje não foram objeto de apuração.


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