Depois de 16 anos de exílio, Paulo Freire retornou ao Brasil em 1980; o
primeiro discurso que fez em solo brasileiro foi no TUCA – Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tive a inesperada honra de me fazer
presente naquela noite. Apinhado de gente, o teatro, mesmo em sua imensidão,
não deu conta de acomodar os que foram homenageá-lo. Centenas ficaram do lado
de fora.
Gravei na memória uma passagem da sua fala, sempre mansa e pausada,
didática acima de tudo. Estava o mestre em sua primeira etapa de desterro, no
Chile, onde passou a lecionar. Fez
amizade com um professor local e sempre que possível saiam juntos, para um
café, um almoço ou uma simples conversa.
“Eu abraçava o meu amigo chileno sempre que nos encontrávamos; abraçava-o
desse modo como todos nós brasileiros fazemos; tocava no ombro dele, nos
braços, nas mãos, enfim, como é do nosso costume. Fui percebendo que ele se
incomodava com isso, mas eu não sabia o que havia de errado.”
Um dia o amigo lhe disse, com uma boa dose de constrangimento: “Olha,
Paulo, que você me desculpe, mas esse negócio de ficar me abraçando, colocando
as mãos nas minhas costas, não estou gostando disso. Meus amigos vão pensar que
estou gostando de homem, essas coisas, você sabe como é isso. Aqui no Chile,
isso não está certo. Você, por favor, não faça mais isso”.
Paulo Freire conta que ficou indignado com essa fala: “Fiquei eu
pensando: o que será que tem de errado com esse povo? O que tem de errado
receber um abraço, um toque no ombro ou nas mãos? Só pode mesmo ser atraso
cultural desses chilenos. Que pena”. Mesmo contrariado, respeitou o pedido do
amigo e, desde então, evitou o contato físico, mínimo que fosse.
Em 11 de outubro de 1973, essa primeira etapa do seu exílio foi
interrompida com o golpe militar liderado pelo General Pinochet, em ato
violento que provocou a morte do Presidente Salvador Allende, democraticamente
eleito e empossado. Chilenos de esquerda e demais sul-americanos que ali se
encontravam tiveram que correr, às pressas – e muitos foram para a Argélia, no
norte da África. Com Paulo Freire não foi diferente.
Na Argélia, o brasileiro travou amizades com outros educadores; um deles,
argelino de nascimento e criação, o recebeu com vivo entusiasmo. Saiam juntos
da universidade quase todos os dias, mas com uma peculiaridade: o amigo argelino
tinha o hábito de tomar as mãos de Paulo Freire, entrelaçadas em suas próprias
mãos, assim como fazem os casais de namorados aqui no Brasil.
Da primeira vez que isso aconteceu, contou-nos que se sentiu extremamente
constrangido; ficou tentado, inclusive, a pedir ao amigo argelino que soltasse
sua mão. Todavia, logo se lembrou do que aconteceu no Chile:
“Então eu percebi que as culturas são muito diferentes entre os diversos
povos do mundo. Cada povo tem seus hábitos, seu modo de vida e de
relacionamento. Percebi que não tinha nada de errado com os chilenos, que não
eram atrasados culturalmente. Percebi também que eu não deveria pedir ao meu
amigo argelino que soltasse minha mão. Continuei firme, mãos entrelaçadas, mas no fundo pensando: Oh! Virgem Maria, e se algum cabra lá do agreste me vê
agora, aqui, de mãos dadas com esse cara, o que vai dizer de mim?”
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