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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Crônica - Marias e Clarices

O Dr. João Gomes Martins, aos 69 anos, chegava por volta do meio dia. Chegava sem emitir um único som, como se pisasse em nuvens, tão macios eram seus passos. Passava altivo pelo corredor e se dirigia ao seu gabinete, acompanhado do motorista, dublê de segurança. Dali só saia no fim da tarde, com o mesmo silêncio da chegada.

Vestia-se com aprumo: sapatos pretos brilhando, calças, paletó e colete impecáveis, em cores sóbrias. Trazia a barba branca finamente aparada, nenhum fio a mais ou maior que o outro. Um chapéu preto encimava-lhe a cabeça; os cabelos brancos, cuidados com esmero, eram vistos apenas dentro do gabinete. Apoiava-se numa bengala preta, de empunhadura prateada: não que claudicasse, mas apenas compunha a elegância charmosa e simpática.
Uma figura aristocrática, o Dr. João Gomes. Juiz da 7ª Vara Federal, em São Paulo, coube a ele o processo em que Clarice Herzog buscava a responsabilidade da União Federal pelo assassinato do marido, o jornalista Vladmir Herzog, ocorrido em 1975. Embora reservado, o magistrado deixou escapar a notícia de que reconheceria o crime dos militares, o que fez com que a ré criasse uma série de embaraços processuais, com recursos e mais recurso para adiar a decisão final. Até um inédito mandado de segurança foi concedido para impedir a leitura da sentença, de modo que a aposentadoria compulsória o retirou do caso.
Os militares apostavam que o juiz substituto, recém empossado, não teria coragem de manter a mesma linha do antecessor. Ledo engano: o jovem Dr. Márcio José de Moraes não se intimidou e escreveu o seu nome da história do Brasil: em outubro de 1978, publicou uma brilhante e bem fundamentada sentença em desfavor dos ditadores, cuja cópia ainda tenho comigo – documento histórico, que marcou o início da derrocada do regime de força.
Herzog foi preso na manhã de 25 de outubro de 1975; interrogado e violentamente torturado, foi assassinado por volta do meio dia, numa das celas do DOI-CODI, no II Exército. Falaram em suicídio, mas as fotos divulgadas mostraram o corpo inerte, de joelhos, preso por um cinto de pano atado a uma janela mais baixa do que a vítima; na garganta, dois sulcos profundos, fatos que tecnicamente impedem o autoextermínio.
A missa de sétimo dia, na Catedral da Sé, reuniu uma diversidade de gente e de credos religiosos, com celebrações de D. Paulo Evaristo Arns, Henry Sobel e Jame Wright. A praça em torno ficou lotada, sem espaço para as volumosas manifestações populares.
Clarice Herzog será lembrada para sempre, na tristeza de sua saga e na dor da sua luta. A ela foram consagrados os versos “Meu Brasil / que sonha com a volta do irmão do Henfil / com tanta gente que partiu num rabo-de-foguete / Chora a nossa pátria, mãe gentil / Choram Marias e Clarices, no solo do Brasil”, cantados na música O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc.
Herzog nunca foi militante político; filiara-se ao Partido Comunista meses antes do seu infortúnio. Coincidência ou não, foi preso, torturado e assassinado após o então Deputado Estadual José Maria Marin discursar na Assembleia Legislativa de São Paulo pedindo providências em relação à TV Cultura, que não estaria, segundo Marin, retratando corretamente as ações governamentais.

2 comentários:

  1. Bela crônica... maravilhoso saber porque choram as Marias e as Clarices! Maravilhoso refletir sobre a importância das pequenas/grandes atitudes pessoais de resistência!

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