Crônica - Memórias quase apagando

Foi em 1983, talvez, que presenciei uma cena marcante, cujos fragmentos ficaram indeléveis na minha memória: Orígenes Lessa e Carlos Drummond de Andrade estavam conversando, em pé, na porta de entrada do Ginásio Virgílio Capoani, na minha natal Lençóis Paulista. Foi numa manhã de domingo, durante uma feira de livros. Minha memória já não me ajuda em quase nada, mas essa imagem dos dois gigantes não se apagará nunca, eu espero.
No saguão, sentado à mesa de autógrafos, estava Josué Montello, imortal da Academia Brasileira de Letras, rabiscando, pacientes dedicatórias para seus leitores. Da fila, enquanto não chegava a minha vez, olhei para a porta e foi então que vi os ícones da nossa literatura; ambos de braços cruzados, ambos de paletó e gravata. Serenos e com gestos contidos, simplesmente conversavam, olhando a cidade. Na frente do Colégio, um terreno baldio, que abrigaria, mais tarde, a sede da prefeitura. Contemplavam a cidade de casas térreas, sem prédios, trocando palavras dispersas. O lençoense, mais encorpado, um pouco mais baixo; o itabirano, mais espigado, pouca coisa mais alto. Os dois com seus tradicionais óculos, com suas conhecidas calvas.

Abobado e surpreso, limitei-me a olhar. Reprimindo em minha timidez a vontade de lhes dirigir algumas palavras, um aperto de mão, apenas contemplei a placidez daquele encontro. Retive apenas essa terna imagem; porém, já não me lembro nem da data e nem exatamente do evento; tampouco me recordo da dedicatória que me fez Josué Montello. E, que pena: o livro que dele comprei e que foi autografado com tanto carinho, perdeu-se entre as tantas mudanças que empreendi ao longo da minha vida.  Daquele instante o que me resta é o enquadramento dos dois escritores, Drummond e Orígenes, emoldurados pela porta de ferro. Ao fundo, bem longe, o verde vivo dos canaviais do Engenho do Luís Boso.

Orígenes foi eleito, em 1981, para a Academia Brasileira de Letras, já na sua segunda candidatura. E foi com a força de acadêmico consagrado e com prestígio de que gozava entre os seus pares que o imortal lençoense brindou a Biblioteca Municipal com um dos maiores acervos do interior do país. Junto aos editores e frequentadores da ABL, angariava volumosas e constantes doações, que chegavam de diversos cantos do país, às vezes de caminhão. Feliz com o fato de a biblioteca levar o seu nome, era assim que retribuía a homenagem.

Drummond e Orígenes faleceram no Rio de Janeiro, onde jazem seus corpos. O itabirano morreu em agosto de 1987; morreu de tristeza, desconsolado com a perda da filha, falecida pouco tempo antes. De incontido desgosto, enfartou. Orígenes Lessa morreu em julho de 1986; seu corpo foi velado em Lençóis Paulista, em meio às montanhas de livros com que equipou a Biblioteca Municipal – e foi essa a última viagem empreendida pelo mestre à nossa terra natal.