Postagem em destaque

Sobre o Blog

Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Crônica - Torre de Vidro

Meu primeiro local de trabalho em São Paulo foi no prédio da Companhia Comercial de Vidros do Brasil, em fins de abril de 1978; uma construção linda, com fachada de vidro verde, na esquina da Rua Antonio de Godoy com a Avenida Rio Branco, no centro de São Paulo. Eram 24 andares de brilho e de imponência naquele foi um dos mais modernos prédios da capital paulista no seu efêmero apogeu. Era a Torre de Vidro.
Inaugurado em 1966, serviu de sede da C.V.B. até que foi arrematado pela União Federal em meados dos anos 1970, junto com um monte de quinquilharias. Xícaras, pires e pratos com a logomarca em azul, garfos, facas, colheres e manteigueiras de prata, compunham o lote de bens arrecadados da empresa falida.
Quando o conheci, era ocupado pela Caixa Econômica Federal: entre os andares 11 e 16 ficava o Departamento Jurídico. No subsolo, uma volumosa e cristalina mina d’água exigia bombeamento ininterrupto. Um prédio construído com luxo; dentro, muito aço escovado e brilhante, muita madeira nas paredes e no piso.  Já o conheci decadente, embora passados apenas doze anos da sua construção. Afora os poucos andares ocupados pela estatal, o resto era fantasmagórico: poeira e fuligem pairando no ar, locais escuros e sem luz elétrica, alguns escombros aqui e ali, num abandono total.
No meu primeiro dia de serviço, um alerta: janelas, em movimento de guilhotina, causavam acidentes sérios com os cabos de aço sem conservação. Muitas nem funcionavam, viviam fechadas. Os elevadores limitavam-se apenas aos andares ocupados pela Caixa; era pelas escadas que explorávamos alguns pavimentos desertos e víamos cenários sombrios, iguais aos dos condaptos descritos por Phillip K. Dick, em Andróides sonham com ovelhas elétricas?
Certa vez fomos dispensados do trabalho: a bomba de sucção deixara de funcionar no fim de semana e os dois pavimentos subterrâneos de garagem ficaram inundados.
Em 1980, chegou a Polícia Federal, em dois andares da parte mais baixa. Uma gente estranha circulando com armas em punho, com óculos escuros, calças pretas, justas e agarradas, que se comportava com grosserias fora dos costumes. Foi um desassossego. Logo depois fomos transferidos para a Praça da Sé, no centenário prédio da Caixa, mas não sem antes presenciarmos Djalma Bom, Devanir Ribeiro, Frei Chico, Lula e outros sindicalistas, presos pela ditadura, que ali prestaram depoimento em tardes de intensa movimentação na portaria.
A Polícia Federal ainda ficou por mais alguns anos na Torre de Vidro; entretanto, ninguém se interessava pela construção e o seu abandono pelo poder público passou a ser completo. A instalação de uma agência do INSS, por volta de 2010, quase não conta, pois apenas o piso térreo foi ocupado por curto espaço de tempo.  Sua manutenção e recuperação já se mostravam inviáveis desde quando ali estive pela primeira vez, em 1978.
Quarenta anos depois daquele dia em que me alertaram sobre os perigos da guilhotina em forma de janela, a Torre de Vidro, enfim, foi ao chão; não resistiu a um incêndio de grandes proporções e desabou. Muitos não quiseram ver, mas as labaredas já estavam se formando há pelo menos quatro décadas.
Uma parte da história foi queimada, matando uma população necessitada de sem-teto que ocupava a torre nos últimos anos. De recordação, ainda guardo um pires branco, de louça, com a sigla C.V.B. em azul; duas faixas, uma também azul e outra dourada, circulam a borda interna da peça. Restos daquela primitiva arrematação que, depois, foi vendida a preço simbólico para os funcionários da Caixa.


Um comentário:

  1. Ainda lembro das histórias que você contava sobre esse prédio, nos finais de semana em que nos visitava. Assim como lembro dos objetos do restaurante que você comprou. Fez muito bem em transformar essas lembranças em letras. Parabéns.

    ResponderExcluir