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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Conto - Polidactilia

Histórias de mãos cheias de dedos nunca me impressionaram. Sempre encarei como uma particularidade de uns e outros. Jamais me preocupei com isso; por vezes nem percebia. Enfim, não me causavam maiores transtornos, não me incomodavam.

Quando eu era apenas um molecão, vez ou outra me deparava com certo homem polidáctilo. Acho que era o único da cidade. Tinha um dedo a mais em cada mão. Seis dedos em cada uma delas; doze dedos, portanto, contando as duas mãos. Do dedo minguinho nascia outro dedinho, mais minguinho ainda. Um dedinho pequenino, curvado. Achava aquilo interessante, uma raridade.
O cidadão cultivava aqueles dois dedos extras com evidente esmero: eram os únicos que ficavam com unhas compridas e limpas, artesanalmente cortadas e arredondadas nas pontas. Eram duas unhas polidas, brilhantes e bem lixadas. Nos demais dedos, não eram visíveis tantos cuidados assim: as unhas eram sujas, não eram aparadas; apresentavam cortes assimétricos e não conheciam lixa. Enfim, os demais eram dedos comuns, sem os mínimos tratos. Lembro-me bem desses pormenores, sem nada que me causasse qualquer impressão ruim. Não me afligia; encarava a multiplicidade de dedos de modo natural.
A minha questão era outra: desde mocinho, tinha a frequente sensação de que perderia os dedos das mãos. Isso angustiava-me sobremaneira. Via-me sofrendo um acidente numa máquina elétrica, as pontas dos meus dedos, carregadas pelas engrenagens, iam sendo decepadas sem perdão, picadas em pequenos e uniformes gomos. Era um sentimento horroroso, que me afetava em profundidade e com certa constância. Vinham-me arrepios ao pensar na hipótese. Sem aviso, sem qualquer razão, vinha essa ideia brutal, que me punha para baixo, derrubava meu ânimo. Sensação maluca. O fato é que me imaginava com dedos a menos, não a mais.
Esse assunto ficou esquecido por um longo tempo; deixei de lado esses pensamentos absurdos. Inclusive, aliás, tornei-me um bom datilógrafo, fiz alguns bonitos trabalhos manuais com madeira; joguei xadrez, apreciando o toque dos dedos nas peças pesadas e esguias. Enfim, passei uma boa fase da minha vida sem me atormentar com os fantasmas da mutilação. Contudo, as coisas começaram a mudar quando, entrando na meia idade, li “O Homem que Matou Getúlio Vargas”, em que o personagem principal, assassino do presidente, é retratado como polidáctilo. É um livro de ficção, bem sei; mas os detalhes anatômicos do personagem me marcaram, aparentemente sem nenhuma razão plausível.
Essa leitura abalou a minha serenidade; remeteu-me, em certo sentido, para um passado de lembranças desagradáveis, que eu reputava sepultadas. E tudo piorou quando, logo depois de ler aquele livro, alguém me falou de um antigo crime: um capataz de fazenda matou o patrão, um Coronel famoso. Matou por vingança de amor – o patrão engravidara a namorada do moço, que desferiu três facadas mortais no peito do Coronel. O caso em si não tinha nada de mais; porém, um detalhe se me prendeu na memória: o capataz tinha um dedo a mais em cada mão! No caso, era um pequeno polegar, que saia do lado externo do próprio polegar, também curvado para dentro. Com unhas bonitas e articulações comuns, eram dois dedos perfeitos. Quer dizer, eram doze dedos perfeitos nas mãos do capataz.
De novo, a anatomia das mãos! Para mim, foi como que um divisor de sentimentos e de preocupações. Foi o começo de uma vida de pavor, de que me livrei com muito custo. Passei a experimentar sensações terríveis; ao invés dos receios passados, de perder dedos, a partir dali passei a me ver como polidáctilo. Assim, sem mais nem menos, logo depois de ler o livro e de conhecer a história do capataz. Foi uma transformação rápida e radical. Meu ser se modificou; o fenômeno dos excessos passou a me intrigar com gravidade, de forma obsessiva. Não que me causasse repulsa, mas era algo que, não sei explicar direito, ficava martelando na minha cabeça. Perturbava-me, desconcertava-me. Desequilibrava-me, enfim, o fato de pensar em dedos replicados ao infinito.
Certa manhã, na escovação dos dentes, percebi uma pequena protuberância no minguinho da minha mão direita. Deve ser uma verruga, pensei; uma boa simpatia resolve. Imerso em outras tarefas, na hora do almoço, peguei uma casca de banana e fiz como se empacotasse aquela saliência; tentando ser discreto, joguei na esquina de casa, que era a encruzilhada mais próxima que pude encontrar. Pronto! Vá embora, verruguinha. Adeus!
Quem dera! Mal sabia o que estava por vir: no começo da noite, ao firmar o punho para escrever um texto, senti o montículo raspando de encontro à folha de papel. Foi então que olhei para as minhas mãos e vi que já não era uma protuberância: eram várias e em todos os dedos. Aliás, para ser mais exato, duas protuberâncias em cada dedo: uma em cada lado de cada dedo, todas nascidas da primeira falange.
Com o passar dos dias, foram-me crescendo dedos e mais dedos, até que em minhas mãos eu contava trinta dedos: os dez com que fui contemplado ao nascer e mais vinte que brotaram e cresceram, em questão de dias. E assim estão até hoje: todos eles se articulam e se movem com independência, conforme meus desejos e comandos.
Agora tenho mãos com dez dedos retos e vinte dedos curvos, que mais se assemelham a árvores de galhos abertos e desfolhados. Não consigo fechá-las direito, ficam como que eternamente espalmadas. Na rua, olham-me com olhos curiosos, sobretudo as crianças. Algumas acham graça e dão risadas. Ou mostram para a mãe e indagam, com espanto:- “Olha, mãe... O que é aquilo?”.
No começo, fiquei deprimido e assustado. Escondia as mãos, não saia de casa. Porém, acostumei-me e já não ligo para o que me aconteceu. O que muda é que agora tenho mais trabalho com o asseio pessoal; mais dedos para lavar, mais unhas para cortar e para lixar, mais cutículas para empurrar, enfim, o trivial, que a gente faz sem nem mesmo perceber que está fazendo. Dá um trabalho maior, mais prolongado; porém, nada além disso.
Claro, o leitor pode imaginar alguns outros inconvenientes, que passei a ter depois disso: dificuldades na manipulação de objetos em geral, dificuldades de escrever, de segurar talheres, xícaras, essas coisas. Já não jogo mais xadrez, não sou capaz de mover as peças sem derrubá-las. E até mesmo essa curiosidade que desperta nas pessoas, é uma chateação, sem dúvida. Porém, nada que me atrapalhe demais. Adequei-me à nova realidade, superei os traumas e sigo vivendo.
Tive que providenciar umas adaptações nos bolsos das calças, das camisas e dos paletós, que agora são maiores e mais folgados, para que minhas mãos volumosas e cheias de dedos caibam neles com algum conforto. Ah! Sim, luvas não se constituem em um problema. Não gosto desses aparatos; jamais tive o hábito de usá-las, nem no frio.
De resto, as coisas voltaram às rotinas; vivo bem com essa diferença, sem mudanças relevantes – exceto no que diz respeito a uma preocupação perene que adquiri em relação aos dedos dos meus pés: examino-os apreensivo, constantemente, várias vezes ao dia, todos os dias...

6 comentários:

  1. Desta vez você se superou. Maravilha. Além do suspense, levou-me a imaginar vantagens e desvantagens com o fenômeno. Fixei-me em algumas vantagens. Datilografia, ou, modernamente, digitação. Imaginou um conjunto de dedos só para as teclas qwert..., outro para asdfg... e um terceiro para zxcvb...? E na música? Piano, órgão, acordeon, já pensou? No esporte, como goleiro? "Tirou com a ponta dos dedos. Um fenômeno.", diriam os Galvões da vida. Peteca, natação e por aí vai. Negativo? Só para a polícia ao "tocar piano". Teriam que arranjar novo formulário. Ou não, porque hoje é tudo digitalizado. E o sistema? Iria dar tilt, com certeza. Abraços e parabéns de novo.

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    1. Trago para esse cantinho a resposta que dei pelo face: o melhor das crônicas e dos contos é o que vem, depois, em forma de comentários e de sugestões. Por exemplo, esse comentário do Santino Frezza: por si só já vale um novo conto; deu asas para a imaginação, ampliando o universo narrativo seguindo na mesma linha do absurdo e do fantástico. Também já disse que você, Santino Frezza, tem muito para escrever, para passar para o papel, num leque de temas realistas e fictícios - assim como ocorre com o Celio Frezza, nosso irmão. Um grande abraço e obrigado pela presença.

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  2. Bem kafkiano. Me fez lembrar de Metamorfose. Vou ter que relê-lo.

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  3. Metamorfose foi um dos livros que mais trabalho me deram para leitura. Comecei e parei, recomecei e parei de novo, inúmeras vezes. Não suportava a ideia do personagem indo para debaixo da cama. Naquele momento, eu morria antes dele. Só com muito custo, depois de 20 anos, ou mais, das primeiras tentativas, é que, enfim, consegui completar a leitura. Kafka é genial, imortal - vãos serão todos os esforços para se chegar minimamente próximo da periferia da periferia daquela genialidade. Um grande abraço, meu querido amigo José Laércio.

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  4. Quando comecei a ler não podia imaginar que caminho daria à narrativa. Cheguei a pensar que terminaria de forma cômica ou com o despertar de um pesadelo. Muito bom, Ezio! Amei!!!!

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    1. A ideia foi fazer um final cômico - mas essa leitura varia bastante conforme o leitor. Grande abraço, Marilene.

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