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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Crônica - Saudades

O pai dela era marceneiro, dos bons. Fazia os móveis da casa e ainda presenteava os filhos, no casamento, com uma cama confortável e de cabeceira ricamente entalhada a formão. Veio moço da Itália, para conhecer a América, com alguns parentes. Só voltaria uma vez para a terra natal: para se casar com a noiva que ficou esperando e para obter a dispensa do Exército Real. Depois disso, muitas cartas, que se perderam no tempo.

Aos 17 anos, órfã de pai e mãe, herdou os afazeres da casa e o cuidar das roupas dos irmãos mais velhos. Quanto forno que varreu! Quanto pão que assou! Quantas vezes levantou de madrugada para fazer comida dos irmãos mais velhos!
Passou a infância e a mocidade num sitio, com muitas carências e necessidades. Com medo do escuro, aprendeu a contar os ciclos da lua para esperar a cheia que clareava a sua noite. Os fantasmas da mata povoaram a imaginação. Só mais tarde é que foi morar na XV de Novembro, a principal da cidade. Casa em ordem, rumava para a marcenaria dos irmãos, que seguiram o ofício do pai: ali, empalhou muita cadeira, que carregava, em pilhas, nas costas.
Casou-se com 21 anos e acompanhou o marido, de volta para a roça. A tulha do sogro se transformou na primeira moradia do casal. Depois, mudou-se para um casebre com chão de terra batida, de frestas largas nas paredes de madeira. Quis o destino que, ao voltar, enfim, para a cidade, fosse morar na Vila Mamedina, recém-aberta, tendo uma imensa mata virgem como vizinhança.
Da filha, que morreu logo ao nascer, nunca falou e nem permitiu que falassem. Foi mãe zelosa de outros cinco; gabava-se de vê-los unidos.
Nunca foi a um cinema. Numa única vez, entrou num teatro, mas não se lembraria disso algum tempo depois. As compras do cotidiano eram feitas pelo marido, que rodava a cidade com uma carrocinha de entrega de lenha e de carretos. Cuidou da casa e do marido; criou os filhos com mãos firmes. Os passeios eram escassos: visitava os sogros nas noites de domingos; vez ou outra, também visitava algum irmão. No mais, nunca ia nem até à esquina.
Cosia as roupas da família, lavava e passava. Na cozinha ampla, deixava um poço à disposição de quem quisesse; abasteceu de boas águas, frescas e cristalinas, uma parte da cidade durante muitos anos.
Foi uma vida dura, de privações. E também de alegrias. Confortou e foi confortada, até os seus 96 anos de idade. Na madrugada do último dia 18 de janeiro, semana passada, ela partiu. Partiu serena e sem reclamações. Creio até que ficou com inveja do Luiz Vieira, o menino passarinho, que vontade de voar – e voou.

12 comentários:

  1. Incrível a capacidade de transmitir tantas emoções, ricas em detalhes e ditar com carinho a fresca despedida. Meus sentimentos.

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    1. Muito obrigado, meu amigo Welington Mafra, pela leitura. Um grande abraço.

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  2. Perfeita síntese de quase um século de vida. Emoção do início ao fim.

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  3. Marcas, lembranças, história de uma vida bem vivida e ensinada às demais gerações.

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    1. Obrigado, Regina, pela visita ao blog. Sim, uma vida longa, cheia de bons exemplos. Ficará inesquecível para as próximas gerações. Abração.

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  4. Excelente Ezinho. Bonita vida e bonita crônica.

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  5. A força e o encanto de uma vida! Grande abraço, caro Ezio.

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    1. Caro amigo, Marco Antônio Bin, que saudades, cara! Um forte abraço para você.

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  6. A riqueza é grande quando abraça a simplicidade e foi com ternura e sensibilidade que você a traduziu. Quase um século de dedicação e de louvável doação. "confortou e foi confortada", você mencionou, e vejo nisso uma preciosidade. Abraço.

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    1. Foi uma vida e tanto, Marilene.Muitas privações, muito trabalho; e também alegrias, sorrisos, compartilhamento. E tudo isso nos deixa uma saudade imensa, sem tamanho.

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