Alguns guardam, com orgulho, a cartilha Caminho Suave, que
alfabetizou diversas gerações. Eu perdi a minha, de um modo inusitado. Um
vizinho, que voltava da escola, parou na rua da minha casa: para fazer graça,
tirei dele um livro ao acaso e dei para uma cabrita, que criavam no quintal da
esquina. Ávida por qualquer coisa mastigável, a dita caprina estraçalhou
justamente a Caminho Suave do menino. A estupidez me rendeu alguns
puxões de orelhas e a perda da minha própria cartilha, que minha mãe me fez dar
em troca do que restou daquelas páginas cheias de baba que jaziam por todos os
lados.
Sem saber disso, o cartunista Henfil criou, nos anos 1970, o Bode
Orelana, que desfilava pelas tirinhas do Pasquim. Era um bode que vivia
de comer livros, um após o outro, saciando a dupla fome: a do estômago e a do
intelecto. As tirinhas eram uma criativa resposta contra os ditadores
militares, que gostavam de proibir livros e quaisquer outras obras culturais.
De relíquia, trago comigo um livro despedaçado, Os meninos da Rua
Paulo, de Ferenc Molnar. Suas folhas se despregaram de repetidos manuseios
e leituras, tão fã que sou desse romance ambientado na periferia da Budapeste
dos anos 1880. A mesma Budapeste que dá nome a uma linda obra de Chico Buarque;
nela, o personagem central, José Costa, circula, entediado, pelas ruas do Rio
de Janeiro e, deslumbrado, pelas ruas da capital húngara; ele ganha a vida
escrevendo para outros escritores, decadentes e sem inspiração.
Chico Buarque se refere a Budapeste com tamanha ternura que me faz crer
que ele também se deliciou com as aventuras de Nemecsek e seus amigos da Rua
Paulo. O maior dos letristas brasileiros é leitor voraz, como ele mesmo demonstra;
um hábito tão salutar e essencial que todos nós deveríamos cultivar.
E o bom é que Chico Buarque, como tantos outros leitores, não perde o senso
e nem é dado a desvarios. Diferentemente do fidalgo Dom Quixote, o célebre
cavaleiro andante que misturava ficção e realidade, encarnava os personagens
dos tantos e tantos livros de aventuras que colecionava e, celerado, saia pelas
estradas a combater inimigos imaginários. Na história de Cervantes, queimaram a
biblioteca do desventuroso herói, na vã tentativa de curá-lo.
Na real, aprendi que livros com muitas coisas escritas são bons, devem
ser lidos; não devem ser recolhidos e nem queimados – e nem dados para as
cabritas.
obrigado pelas referências literárias professor, sempre aprendo algo com seus textos
ResponderExcluirObrigado pela visita. Volte sempre.
ExcluirMaravilha de texto
ResponderExcluirGrande Tadeu, o Mestre dos Mestres. Agradecido pela cordial visita. Abraços, meu amigo.
ExcluirMuito bom esse passeio, inspirado em um fato realmente inusitado. Quem não gosta de livros desconhece um dos grandes prazeres da vida. E ainda bem que ainda temos liberdade para lê-los. Há bom humor em sua crônica. Que cabrita, hem!!!!! Abraço.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirObrigado, Marilene, fotógrafa, poeta e pensadora, obrigado pelo carinho. Sim, leitura é um hábito que carrego desde criança; meus irmãos, Wilson e Santino, leitores contumazes, sempre deixavam alguma coisa ao alcance da minha mão. Me lembro de ter lido O Chefão em dois dias apenas, no estrito limite de tempo que as circunstâncias assim exigiam. Grande abraço, saudades.
ExcluirEzzio, bom dia! Que coisa boa acordar e ler esse texto...consegui imaginar você com a cartilha "Caminho Suave" toda babada...dei risada aqui, sozinha! Quem lê fica só, apenas fisicamente! Excelente final de semana para vocês! Grande abraço. Lili
ResponderExcluirEliane Leite, tudo bem? Saudades! Que bom que gostou. Venha sempre, é bom recebê-la. Abraços.
ExcluirUma crônica muito especial!
ResponderExcluirCheia de surpresas e pontes, reflexões, estimula o refletir, parece com uma conversa tranquila e próxima, e isso nos faz bem!
A qualquer tempo, mas ainda mais nestas circunstâncias inusitadas que vivemos neste primeiro semestre de 2020...
Clarice Villac, que mais uma vez me honra com a sua presença neste cantinho singelo. Tempos críticos e preocupantes, que requerem firmeza dos nossos propósitos e das nossas posturas. Forte abraço.
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