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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Crônica - Comendo livros

Alguns guardam, com orgulho, a cartilha Caminho Suave, que alfabetizou diversas gerações. Eu perdi a minha, de um modo inusitado. Um vizinho, que voltava da escola, parou na rua da minha casa: para fazer graça, tirei dele um livro ao acaso e dei para uma cabrita, que criavam no quintal da esquina. Ávida por qualquer coisa mastigável, a dita caprina estraçalhou justamente a Caminho Suave do menino. A estupidez me rendeu alguns puxões de orelhas e a perda da minha própria cartilha, que minha mãe me fez dar em troca do que restou daquelas páginas cheias de baba que jaziam por todos os lados.
Sem saber disso, o cartunista Henfil criou, nos anos 1970, o Bode Orelana, que desfilava pelas tirinhas do Pasquim. Era um bode que vivia de comer livros, um após o outro, saciando a dupla fome: a do estômago e a do intelecto. As tirinhas eram uma criativa resposta contra os ditadores militares, que gostavam de proibir livros e quaisquer outras obras culturais.
De relíquia, trago comigo um livro despedaçado, Os meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnar. Suas folhas se despregaram de repetidos manuseios e leituras, tão fã que sou desse romance ambientado na periferia da Budapeste dos anos 1880. A mesma Budapeste que dá nome a uma linda obra de Chico Buarque; nela, o personagem central, José Costa, circula, entediado, pelas ruas do Rio de Janeiro e, deslumbrado, pelas ruas da capital húngara; ele ganha a vida escrevendo para outros escritores, decadentes e sem inspiração.
Chico Buarque se refere a Budapeste com tamanha ternura que me faz crer que ele também se deliciou com as aventuras de Nemecsek e seus amigos da Rua Paulo. O maior dos letristas brasileiros é leitor voraz, como ele mesmo demonstra; um hábito tão salutar e essencial que todos nós deveríamos cultivar.
E o bom é que Chico Buarque, como tantos outros leitores, não perde o senso e nem é dado a desvarios. Diferentemente do fidalgo Dom Quixote, o célebre cavaleiro andante que misturava ficção e realidade, encarnava os personagens dos tantos e tantos livros de aventuras que colecionava e, celerado, saia pelas estradas a combater inimigos imaginários. Na história de Cervantes, queimaram a biblioteca do desventuroso herói, na vã tentativa de curá-lo.
Na real, aprendi que livros com muitas coisas escritas são bons, devem ser lidos; não devem ser recolhidos e nem queimados – e nem dados para as cabritas.

11 comentários:

  1. obrigado pelas referências literárias professor, sempre aprendo algo com seus textos

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    1. Grande Tadeu, o Mestre dos Mestres. Agradecido pela cordial visita. Abraços, meu amigo.

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  3. Muito bom esse passeio, inspirado em um fato realmente inusitado. Quem não gosta de livros desconhece um dos grandes prazeres da vida. E ainda bem que ainda temos liberdade para lê-los. Há bom humor em sua crônica. Que cabrita, hem!!!!! Abraço.

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Obrigado, Marilene, fotógrafa, poeta e pensadora, obrigado pelo carinho. Sim, leitura é um hábito que carrego desde criança; meus irmãos, Wilson e Santino, leitores contumazes, sempre deixavam alguma coisa ao alcance da minha mão. Me lembro de ter lido O Chefão em dois dias apenas, no estrito limite de tempo que as circunstâncias assim exigiam. Grande abraço, saudades.

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  4. Ezzio, bom dia! Que coisa boa acordar e ler esse texto...consegui imaginar você com a cartilha "Caminho Suave" toda babada...dei risada aqui, sozinha! Quem lê fica só, apenas fisicamente! Excelente final de semana para vocês! Grande abraço. Lili

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    1. Eliane Leite, tudo bem? Saudades! Que bom que gostou. Venha sempre, é bom recebê-la. Abraços.

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  5. Uma crônica muito especial!
    Cheia de surpresas e pontes, reflexões, estimula o refletir, parece com uma conversa tranquila e próxima, e isso nos faz bem!
    A qualquer tempo, mas ainda mais nestas circunstâncias inusitadas que vivemos neste primeiro semestre de 2020...

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    1. Clarice Villac, que mais uma vez me honra com a sua presença neste cantinho singelo. Tempos críticos e preocupantes, que requerem firmeza dos nossos propósitos e das nossas posturas. Forte abraço.

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