Postagem em destaque

Sobre o Blog

Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Crônica - Acaso

 

No final dos anos 1980, descíamos, eu e Ber, pela Rua Augusta. Na boca da noite, depois se do serviço, íamos a pé para casa, na região central de São Paulo, como de costume. Na calçada estreita, distraídos e de mãos dadas, como de costume, a certa altura fomos surpreendidos por um paredão a nossa frente: soltamos as mãos e desviamos de três grandalhões que vinham subindo, em sentido contrário. Olhando para cima, de relance, foi que vimos o lendário Ray Conniff e suas duas filhas, abraçados, sorridentes, elegantemente trajados – e, claro, eles nem sequer perceberam o nosso desvio, nem a minha admiração.

Cantor, trombonista, maestro, arranjador e dançarino, Ray Conniff encantou o mundo; especialmente, dizem, encantou os brasileiros. Me encantou! Pôs alegria e vida na música popular internacional, orquestrando-as maravilhosamente bem, dando a elas nova roupagem e excepcional originalidade. Tudo com muito suingue, muito balanço. Dançante.

Raul Seixas, bem nessa época, morava no nosso caminho, mais precisamente num Apart-hotel da Rua Frei Caneca; frequentávamos, em horários diferentes, a mesma casa de discos, na Rua Matias Aires, logo abaixo da Avenida Paulista. Um sebo, na verdade, com muitos e variados bolachões. Nos longos papos com o proprietário, soubemos que o Raulzito também aparecia por ali no meio da tarde: “Ele se debruça aqui no balcão, mal consegue falar e dorme por longo tempo, em pé mesmo. Por volta das cinco da tarde, a secretaria vem buscar o Maluco, leva ele para casa. Você que gosta dele, venha vê-lo, é gente boa”. Não, não fui; resisti bravamente a uma visita ao meu grande ídolo, não suportaria vê-lo naquele estado.

Em Olinda, nos aconteceu algo bonito, que está registrado em algumas fotografias: fizemos uma caminhada pelo alto da cidade, no final da tarde, passamos pela Catedral, admiramos verde mar por sobre o casario colonial. Andávamos a esmo, entre fontanários e as belas fachadas das ruas estreitas, quando fomos atraídos por uma sonora frevança; atrás dela, chegamos até a casa do Alceu Valença, que gravava um especial para uma TV francesa.

Tivemos direito a uma linda e bem executada coreografia de ágeis dançarinos e dançarinas, todos vestidos a caráter, com sombrinhas multicoloridas. O som era de uma deliciosa banda da velha guarda. Tudo sob o comando do Chico José, jornalista pernambucano. Alceu Valença, com uma capa vermelha, coroa dourada na cabeça e um cetro prateado na mão direita, cantava, cantava e cantava. E dançava, dançava e dançava.

As fotos da Ber, frevando sob a janela do sobrado, se constituem na lembrança viva daquela tarde.

2 comentários:

  1. Bela crônica, colorida e sonora, respeitosa e carinhosa.
    Estar no lugar certo, na hora certa, é divino !
    Parabéns pelo texto, e por reconhecer as riquezas desta Vida !

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, prezada Clarice Villac. Alguns encontros, ainda que rápidos e fortuitos, são marcantes. Vale a lembrança. Forte abraço para você.

      Excluir