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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

domingo, 16 de maio de 2021

Electric Mifeng - Parte I

 

Jards acordou em sobressalto, numa manhã de Outubro de 2057. Achava que tinha perdido a hora. Apressado, pulou da cama, abriu a janela e recebeu a luz ofuscante do sol diretamente na cara; a grande bola vermelha recém-saída do horizonte mostrava que ainda era cedo. Ufa! Que bom, pensou ele!  Era apenas uma questão de controlar a ansiedade. Havia, ao menos, a promessa de um dia quente e propício para a montagem das abelhas elétricas que receberia naquela manhã. Com alguns esforços e sem perder tempo com coisas paralelas, talvez conseguisse montar todas até o final da tarde.

Como desjejum, tomou uma infusão instantânea, com sabor adocicado de café, e comeu algumas massas que sobraram do dia anterior. Por volta das 9 horas, rigorosamente como combinado, recebeu o sinal sonoro da Electric Mifeng., no comunicador móvel: pronto, a encomenda já estava baixando, literalmente, no quintal de casa, trazida por um drone teleguiado desde a América do Norte.

Com pequenas e quase imperceptíveis variações de tamanhos e cores, ali estavam, em saquinhos separados, as centenas de pequenas peças para a montagem do seu primeiro e tão sonhado enxame de abelhas eletrônicas: minúsculas cabeças, abdomens, pernas e asas. As cabeças, não maiores que um grão de arroz, vinham com os tradicionais cinco olhos, duas antenas e uma boca com mandíbulas potentes; os abdomens se apresentavam de tamanhos e cores diferentes, alguns mais volumosos que outros, conforme a função de cada inseto; nas pernas, dobráveis, se viam as delicadas corbículas, adequadas para transporte de pólen, resinas e néctar.

Ah! Sim, bonitas eram as asas, sedosas e transparentes. Tudo se encaixava em harmonia, formando pequenos seres graciosos, com articulações próprias para voarem tal como faziam os verdadeiros insetos de outrora; deles sobraram apenas os vídeos, realizados antes que a abrupta degradação ambiental os dizimasse por completo.

Com a noite já adentrando, finalmente encaixou os chips nos ventres das fengs, cuidando para não confundir tamanhos e as atividades de cada exemplar. Ao todo, montou 100 mifengs, entre gõngzhufengs, explorfengs, jingchás, zangsfengs, gõngrefengs e silifengs, em grupos bem proporcionados, com a ajuda de gabaritos e instruções do fabricante; os textos estavam redigidos em precário mandaluso, uma mistura de português, inglês e mandarim que lhe gerou algumas dificuldades de compreensão.

Uma centena de mifengs, de obsolescência programada; mais não dava para comprar com o minguado orçamento. Ainda devia algumas prestações dos pastos apícolas artificiais, que já estavam montados há alguns dias; eram lindos arbustos, verdes e floridos, mantidos virtualmente através de sofisticadas e quase invisíveis placas fotoelétricas que processavam água dessalinizada e glicose, num canto do quintal concretado e protegido das intempéries. Era desses pastos que as mifengs tirariam os alimentos necessários à sobrevivência da colmeia; os arbustos compunham um perfeito jardim, que se confundiam, à primeira vista, com as plantas que a natureza produzia antigamente. Valia cada centavo gasto.

Foi um dia cansativo, de trabalho intenso e meticuloso; Jards sentiu as vistas cansadas, muitas dores nas costas e os dedos doloridos de tanto ajustar encaixes. Comeu algumas sobras das sobras, nos raros momentos de descanso. Não teve tempo para carregar os chips. Durante a noite os programas ficariam baixando e no dia seguinte seriam carregados sem maiores dificuldades.

Foi dormir contente e satisfeito. Estava seguro de que as mifengs cumpririam à risca as missões para as quais foram programadas, desde a escolha do local de nidificação do grupo até a coleta de alimentos no jardim eletrônico. Tudo funcionaria perfeitamente bem, incluindo a geração de filhotes e a reprodução do grupo; pelo menos é o que garantia o fabricante – a Electric Mifeng and Co., uma conceituada multinacional chinesa especializada em nano-inteligência artificial que fabricava peças explorando mão de obra barata no interior dos Estados Unidos da América do Norte.

 


3 comentários:

  1. Incrível - e surpreendente - desfecho, Mestre Ezio

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Que bom que gostou, prezado amigo Virgílio. É sempre bom receber a sua visita. Grande abraço.

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