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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

sábado, 25 de setembro de 2021

Crônica - Um livreiro Cortez

 

Me recordo do entusiasmo com que frequentei a PUC São Paulo, entre 1979 e 1985. Foram sete anos de militância política clandestina, na Convergência Socialista, de política estudantil e de boas noitadas. Jamais cheguei sequer perto do que se chama de “aluno brilhante”; porém, nunca carreguei dp e nem tive reprovação na faculdade: é que tanta agitação e curtição não poderiam caber, claro, em apenas cinco anos!

Na efervescência estudantil da época, o ambiente acadêmico se me apresentava de certo modo taciturno, ainda impregnado da brutalidade da Polícia Militar de São Paulo que, pouco antes, em 22 de setembro de 1977, invadira o campus da Monte Alegre para bater nos estudantes. Dois anos depois, ainda pude sentir o cheiro do gás lacrimogênio e do sangue dos alunos que ainda pairava no ar.

A PUC São Paulo foi palco de resistência contra a ditatura. Ali pude conhecer muita gente interessante: José Dirceu, discreto e ressabiado, Aldo Rebelo, comunista convicto e antipetista idem, que atrapalhava a nossa luta pela criação do PT e que, depois, foi Ministro da Defesa no Governo Lula. Assisti palestras do José Genoíno, recém-chegado da prisão por conta da Guerrilha do Araguaia; ali testemunhei o primeiro discurso que Paulo Freire proferiu em terras brasileiras no imediato retorno do exílio.  Também conheci José Eduardo Cardoso, que presidiu o D.A. do Direito e seria Ministro da Justiça da Presidenta Dilma. Enfim, fui aluno do elegante democrata Franco Montoro, o então Senador da República que ministrava as aulas mais concorridas do campus.

Em 1980, suprema conquista, pudemos votar, alunos e funcionários, em eleições diretas para a Reitoria da PUC – e foi assim que Nadir Kfoury, a tia do Juca, foi a primeira Reitora eleita democraticamente no Brasil.

Nesses tempos de chumbo, as obras políticas eram proibidas; nada relacionado com democracia, comunismo, socialismo, povo, liberdades e afins podia circular. Houve até estudante preso porque estava com “O vermelho e o negro”, em que Stendhal conta as aventuras amorosas do seminarista Julien Sorel pela Paris pós-Napoleão.

E quando precisávamos do Manifesto do Partido Comunista? Ou de algum volume de O Capital? Ou do Literatura e Revolução, de Trotsky? Ou dos Escritos de Lenin? Quando isso acontecia, a dica era uma só: procura o Cortez!

O Cortez era uma figura imponente, alto, cabelos compridos e amarrados em rabo de cavalo, barbas crespas e óculos de aros redondos; trajava camiseta branca e calça Lee suja e desbotada. Lá estava ele com a sua indefectível mala, abarrotada de obras, para todos os gostos da esquerda. De fala mansa, atencioso e gentil, nos fornecia livros sem nome de editora ou de tradutor, sem data de edição, sem nada que denunciasse a origem – e que nos eram entregues sorrateiramente, com todas as cautelas então necessárias.

Apaixonado pelos livros, Cortez marcou uma época dentre os estudantes universitários; não havia quem não o conhecesse. E de tão apegado aos livros, por fim, fundou sua própria editora, que seria consagrada com o seu próprio nome.


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Muito que bem! Que me perdoe o raro leitor por esta crônica delongada – mas a minha intenção, de verdade, é prestar uma homenagem, singela, ao querido e já saudoso José Xavier Cortez, esse potiguar que acaba de partir, aos 84 anos de idade.

Que descanse em paz, Livreiro Cortez, à sombra da cultura e do conhecimento que espalhou entre todos nós.

 


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