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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

domingo, 18 de setembro de 2022

Crônica - Salto Carrapeta

 

Quando adolescente eu vibrava com as viagens de serviço que fazia, vez ou outra, para a capital paulista. Vestia o que tinha de melhor - e que não era muita coisa. Calça boca-sino, bordô ou algo bem parecido, agarrada nas pernas e que depois se abria, súbito, cobrindo os sapatos sem encostar no chão. Sapatos bicolores, preto e branco, sola-plataforma e com salto carrapeta, madeira à vista. Na moda.

Uma ou duas da tarde, quando muito, com o serviço terminado, saia pelo centro da cidade para fazer meus passeios. Saia sozinho, correndo para ninguém me acompanhar. Vou até a esquina e já volto. Comprar cigarro. Os colegas ficavam no escritório da empresa, na Rua Boa Vista, preparando a viagem de volta.

A primeira coisa que fazia era espiar, de longe e timidamente, as mocinhas nas esquinas, convidativas e ao mesmo tempo temidas aos olhos inexperientes. Depois as bancas de jornais e charutarias, em busca de selos. Avenida São João, Barão de Itapetininga, Sete de Abril. Galerias. Tinha fascinação pelos selos do leste europeu. Procurava particularmente os soviéticos, mais sóbrios; certa feita encontrei duas séries completas, uma da antiga DDR - República Democrática da Alemanha,  com figuras da corrida espacial de então e outra da Hungria, com motivos enxadrísticos. Neles eu empregava as minhas parcas economias.

Certa vez desfilava o meu salto carrapeta pela Praça do Patriarca. Ia desviando dos buracos do calçadão. Pedras portuguesas, faltando uma aqui, outra acolá. Opa! pisei num vazio. Meu pé direito afundou. Ora, vamos, o que é isso, um buraco! Dou outro passo e meu pé afunda de novo. De novo? Quanto buraco. Presta atenção senão vai cair e tal e coisa. Mais um passo e um terceiro buraco. Espera. Assim não. Olhei para trás e não vi buraco algum. Vi apenas o salto carrapeta despregado e largado, lá atrás. Parado, imóvel, olhando para mim. Que situação! Que faço agora? Dinheiro para comprar outro, nem pensar! Eis que num cantinho, ali perto, achei um sapateiro. Que sorte! Um pé calçado e outro não, ele rindo da minha cara. Botou uma cola mágica, uns pregos. Restabeleceu meu sapato em alguns minutos. Alívio.

Naquele dia voltei feliz pra casa. E com os selos soviéticos, que só eu tinha.

Os selos ainda estão numa pasta azul, junto com milhares de outros exemplares da época. E na memória está a angustia repentina do salto carrapeta despregado, que quase foi ficando pelo caminho.






10 comentários:

  1. Saudades de Sampa! Belos selos!

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    1. Obrigado, Bernadete. Sampa, nossa velha conhecida. Beijos, meu amor.

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    2. Bjos, meu amor e companheiro!

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  2. Parabéns Ezio....que delícia de leitura .....bjo

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  3. Deixei um comentário no face e o transcrevo aqui rss. Ezio, que delícia de leitura! As crônicas me agradam quando são leves, mostram uma viagem ao passado, exploram acontecimentos que a memória guardou, como a sua. As palavras fluem com naturalidade e vivemos, junto com o autor, a experiência. Abraço.

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    1. Muito obrigado, Marilene, minha grande e querida amiga. Gosto, né, reviver essas coisas boas... Um grande e carinhoso abraço para você, Marilene.

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  4. Mais uma saborosa crônica. Essa me leva ao passado, minhas andanças pela São João, Ipiranga, 7 de Abril, Viaduto do Chá, Arouche e o Pingão vez ou outra.
    Uma inesquecível pizza no Giovanni, na República, na companhia da minha eterna namorada. Parabéns!

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    1. Obrigado, Santino, pela vinda. Sim, o centrão de São Paulo com o seu inigualável charme. Sempre que posso, passo por lá. Abraços.

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  5. Muito bom o testo mestre!!!

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