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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

sábado, 22 de outubro de 2022

Resenha - Língua perdida

 

No geral, até que gosto de ler resenhas de livros, filmes, shows e sobre o que mais se me apresentar. Eu mesmo não sou dado a fazê-las. Nunca fiz, que me lembre. Abro uma exceção, agora, diante do Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, com que Raul, meu filho, me regalou. Espero que o meu imediatismo não contamine o resultado final – mal terminei a leitura e já me pus a escrever, sem as reflexões mais aprofundadas que o romance merece. Não que eu queira um brilho vago nas redes sociais; antes, desejo apenas expor o meu apreço pela obra.

Torto Arado foi o vencedor do Jabuti, de ficção, de 2020, mas não é por isso que merece ser lido. Sem, no geral, negar sua importância, essa premiação não reflete por si só a qualidade da obra premiada. Por vezes, alguns prêmios são frutos da ausência de coisa melhor no mercado editorial, permitindo que autores duvidosos usufruam de um certo brilhareto entre seus amigos. Disso me convenço por algumas leituras que tenho feito ultimamente.  

Não é o caso de Itamar Vieira Júnior, cuja obra me fez rememorar Cem Anos de Solidão, do (justamente) laureado Gabriel Garcia Marquez (Nobel de 1982). Se a maestria do colombiano é inigualável dentre os latino-americanos, a de Itamar não fica muito atrás, sem nenhum favor. Como não ver na saga das irmãs Bibiana e Belonísia estreitas semelhanças com as vivências de Pilar Temera e Remédios Mascote? Pobreza generalizada, semiescravidão de pessoas subjugadas e oprimidas pelas elites econômicas, destinos funestos dos personagens como que previamente traçados e inexoravelmente cumpridos ao preço de sangue e suor, de dor e de lágrimas engolidas, de perdas e de decepções que se acumulam de geração em geração, num círculo vicioso que parece nunca ter fim.

José Arcádio Buendia e Úrsula Iguarán formaram na imaginária Macondo, sob intensas e continuadas chuvas, uma prole destinada a repetir os mesmos sofrimentos e vicissitudes de seus antepassados; é o que se vislumbra, quase que sem tirar e nem por, com Zeca Chapéu Grande e Salustiana, a Salu, na também fictícia Fazenda Água Negra e arredores.

Em Torto Arado desfilam os aspectos místicos e religiosos tão ao gosto de Garcia Marquez: se Rebeca costuma comer terra quando está preocupada com alguma coisa; se Remédios, sem maiores explicações, sobe aos céus diante de olhos incrédulos dos terrestres, com Itamar se celebra o jarê, com toda sua força espiritual, capaz de reunir numa só crença os pobres e esquálidos do lugar, que com nada mais contam para sua sobrevivência. Cerimônia que nos ajuda a identificar o ambiente em que a saga se desenvolve, o jarê é uma mistura de celebrações indígenas com práticas religiosas de matriz africana, típica da Chapada Diamantina dos tempos da garimpagem nos arredores de Lençóis, Andaraí e Mucugê.

Em síntese, nas duas obras aflora a desditosa metáfora das veias abertas da América Latina (Eduardo Galeano), sem que lhes falte nem mesmo o realismo fantástico; característica marcante do Cem Anos, também reverbera, ainda que de modo mais sorrateiro, em Itamar Vieira Júnior. E assim também as aventuras e os desejos sexuais de alguns personagens, com seus prazeres e suas frustrações et coetera. Duas obras, mágicas, enfim.

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PS 1: Obrigado, Raul, pelo belo presente.

PS 2: Em Machado, traiu ou não traiu? Em Itamar, quem ficou muda? Perguntas que não querem calar.

PS 2: Que me perdoem os leitores mais preciosistas se meu texto não lhes agrada. Se é certo que o escasso tempo para pesquisas me impôs uma escrita de pronto e mais de passagem, sem maiores artesanias, certo também é que vilania não é um adjetivo que lhe caiba.




2 comentários:

  1. Bom Dia! Mesmo que de pronto… o texto reflete a obra!! Um livro primoroso e necessário. Quem ficou muda? Uma 2ª leitura o aproximará um pouco mais da resposta. Grata.

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  2. Parabéns Ezio....belo texto....parabéns.

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