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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Conto - O inverno do capitão

 

Quem o vê, e são poucos os que agora conseguem vê-lo rastejando informe e desengonçado pelo gramado nas imediações do palácio presidencial que lhe fez as vezes de covil nos últimos anos, não consegue sequer imaginar que esse ser rastejante é o mesmo que governou o país com mãos de ferro e envoltas em sangue até há poucos meses.

O gramado palaciano, outrora verde e viçoso, costumeiramente aparado com esmero por especialistas designados pelos melhores paisagistas da terra, agora não é nem sombra do orgulho que fincou pé no passado e tampouco é lembrado pela pujança de outrora. Sem as roçadas necessárias e sem o rastelo para recolher as folhas secas que vão se lhe entranhando, tudo não passa de um pasto-general apodrecido e propício para a criação de todas as espécies de animais rasteiros que se criam nos ambientes abafados pelo calor e ao mesmo tempo umedecido pelas chuvas de verão que assolam o planalto em certas épocas do ano. E é neste ambiente putrefato que o verme agora rasteja, quase que invisível e misturado com o que há de mais repugnante no seu meio, rumo aos esgotos clandestinos, únicos recônditos que talvez possam, eventualmente, protegê-lo das ressequidas intempéries invernais que o destino inexorável lhe reserva.

O capitão rasteja ofegante, exausto, e vai derrubando as crostas da pele encurvada pelo caminho; são crostas que se despregam ao contato com a relva, grandes placas pretas espiraladas que se soltam com certa facilidade; o ser não tem mais o vigor físico que um dia ostentou pensando que fosse um vigor infinito. Ele não rasteja sozinho e nem tem ânimo pra seguir à frente do cortejo. Quem lidera a marcha é aquela que foi sua companheira dos anos em que se sentiram bafejados pela sorte; qual sombra de uma mocidade e beleza morena que já não adorna mais a sua existência, só lhe cabe rastejar incansável, servindo de guia para o marido encarquilhado e choroso que lhe vem logo atrás. O destino reservou a ela o mais cruel dos papeis, o de servir de precursora para o séquito formado pelo marido, pelos filhos, enteados e agregados vários e incertos que, em fila indiana, lhe acompanham os passos, obedientes e cambaleantes, qual dejetos enxotados da história e enviados rumo à escatologia, em seu sentido bíblico mais abjeto e repugnante que se possa conceder, que reduzirá a família inteira ao pó malcheiroso e esvoaçante de um enxofre amarelo característico.

O capitão rasteja, a bem dizer, desde os imemoriais tempos de caserna, quando se destacava nos exercícios castrenses que exigiam a locomoção rápida através de movimentos realizados com o  ventre na terra: poucos colegas tinham a habilidade de se deslocar sob cordas e obstáculos de madeira colocados quase que ao rés do chão e, esfregando cara, peito, barriga e pernas no solo marrom, atingir o final do trajeto, ainda que a custo de esfolados e arranhões em todo o corpo. Se gabava, inclusive, dos feitos que obtinha nestas provas, propalando o quanto apreciava a movimentação que mais o fazia se parecer com um réptil cracolento, porém rápido e indomável. Chegava ao ponto final, com a baba empoeirada escorrendo pela boca e pelo nariz escalavrado – mas chegava feliz e exultante, reconhecendo no seu proceder as caminhadas de um lagarto esperto e faceiro. Era assim que se realizava.

Detestava a posição verticalizada. Nas práticas marciais, gostava das lutas que se desenrolavam no tatame; lutava deitado, por mais que o seu comandante insistisse na luta em pé. Muitas vezes teve que ser amparado sobre as próprias pernas, cambaleante, sustido pelos braços fortes dos homens da instrução. Condoído com a fragilidade do subordinado, que não conseguia se manter ereto, seu treinador o protegia, fisicamente, inclusive, da chacota dos colegas de turma – e não é preciso dizer do alento que o capitão sentia na proteção dos braços fortes que o enredava.

Quando foi lembrado para presidente, reagiu como qualquer verme poderia reagir: encurvado em uma cadeira na sala de estar da sua casa, sorriu um riso frio e desconfiado, sem atentar para um grão de ramela que estava cristalizado no seu olho direito desde o amanhecer daquele dia infausto para toda uma nação. Não demonstrou alegria e nem tristeza; antes, pelo contrário, não entendeu direito do que se tratava e nem o que o esperava no exercício do cargo. Olhou para o chão e se viu fazendo uma penosa campanha eleitoral, se arrastando entre um compromisso e outro pelo país afora, indo num mole-mole sem fim.

Do costume de andar curvado logo passou a andar de barriga, que era como se sentia bem – e assim andava triunfante, porque nesse movimento basicamente só era acompanhado por poucos. Era um sacrifício danado colocá-lo em pé, principalmente para as futuras atividades palacianas. Nada o fazia permanecer verticalizado; por fim, tiveram que, atitude extrema, recorrer ao empalamento para que ninguém percebesse o quanto de dobras já possuía em seu corpo encarquilhado.

Foi empalado numa manhã de segunda-feira, pelos seus assessores mais próximos, que apostavam todas as suas fichas no voto de uma população acostuma desde seus ancestrais, a se rastejar em busca das migalhas do poder. A empalação foi feita na presença de poucos familiares, em operação que se pretendia esconder do grande público. Sempre sob o comando da morena esposa: invocando Deus acima de todos e com Jesus na camiseta branca, ela ordenou, sem piedade e em alto e bom, que lhe atravessassem o corpo, de baixo para cima, com uma longa e delgada estaca de eucalipto rosa. Foi assim, com um único golpe certeiro e presto, que conseguiram o efeito prático de colocá-lo na posição vertical que se espera de todos os seres humanos, principalmente dos governantes.

Governou feito um déspota, exaltando a tortura dos porões de uma ditadura cujas feridas ainda não estavam cicatrizadas; comandou grupos de extermínios organizados em milícias e permitiu a prática das mais ignóbil corrupção, inclusive no âmbito familiar; desdenhou da vida alheia, pregou a violência contra as mulheres, brindou os negros com ditos racistas e espezinhou homossexuais, sempre sob os aplausos daquelas que, aos seus pés, rastejavam como ele rastejaria se não fosse o empalamento que era obrigado a suportar nas aparições públicas. Nas vezes em que se livrava da estaca, rapidamente se deitava ao chão e fazia uma das suas brincadeiras preferidas: flexões de braço, com o corpanzil rente ao chão. Era diversão na certa, para ele e para seus seguidores.

A propósito da solução encontrada pela assessoria, teve sérias complicações de ordem estomacal e intestinal, que outras coisas não eram senão os efeitos danosos dos prolongados usos da estaca que lhe atravessava as entranhas. Passou por diversas e delicadas cirurgias, com as mais diferentes desculpas: uma vez disseram que uma lagosta inteira e não mastigada teria trancado seus intestinos; em outra ocasião, foi dito que um bagre africano lhe perfurara a parede do estômago; enfim, uma série de desculpas incríveis para esconder o verdadeiro problema do grande público. Até a ideia de um pseudo-ataque de arma branca, desferido por um improvável inimigo político, chegou a ser arquitetado, tudo na tentativa de esconder os efeitos do doloroso empalamento.

Quando de uma inesperada pandemia, provocada por um vírus letal e desconhecido, dizimou uma parcela significativa da população do seu país, viu no acontecimento uma oportunidade para se livrar de pobres e de velhos indefesos, que, no seu sentir, geravam custos adicionais aos cofres públicos. O seu gosto pela morte se mostrou, então, em sua plenitude: impiedoso, brincou, zombou, riu de gargalhar, com as dificuldades respiratórias dos moribundos. Foi um dos momentos em que mais se mostrou feliz durante o curso do seu mandato; nunca disfarçou o gosto delirante pela morte alheia e no seu semblante era visível que apreciava a visão do corpo inerte da pessoa, à espera da sepultura. Se deleitava olhando para um caixão, vendo o corpo em vias de ser consumido pelos vermes com que tanto se assemelhava. Seus olhos brilhavam, incontidos, externando o prazer mórbido, compulsivo e indisfarçável com essas cenas que viraram rotinas no país durante a disseminação do vírus. Negou-se terminantemente a prestar os socorros oficiais que estavam ao seu alcance contra a mortandade que se avolumava dia após dias e nem cuidou de auxiliar as famílias enlutadas, angariando, com isso, uma série de repulsas à sua conduta.

Em tempos de baixa aceitação popular, descobriu nos passeios de moto um escape para o infortúnio que se avizinhava, já que a crescente queda de popularidade o levaria à perda do poder. Era sobre uma motocicleta que podia, desempalado provisoriamente, deitar-se, curvar-se na posição que tanto gostava e, tal como um ser rastejante, delirar em rides furiosos pelas ruas das cidades que visitava – e sempre acompanhado por uma imensidão de insanos, todos pobres de bolso e de espírito, que, ao jeito do líder, também se compraziam, reclinados e rastejadores, com a defesa da tortura, com a morte lenta dos enfermos, com a misoginia, com o racismo e com todas as demais formas capazes, ainda que por vias tortas, exaltar uma duvidosa supremacia branca e elitista.

As motociatas, assim chamadas pela imprensa, se constituíram no auge das suas aparições públicas; nelas ele se sentia confortável na medida em que podia se ver livre do empalamento. Era então que se curvava em sua infinita baixeza, tal como gostava de fazer e, quase que de modo imperceptível, agia como um verme vergado sobre o peso do próprio corpo, que tanto era do seu agrado – e lambia terra do caminho, subordinado aos desígnios da história.  De verdade, detestava o empalamento, a que era obrigado a suportar por imposição da esposa e dos assessores mais próximos, únicos que sabiam efetivamente dos sacrifícios que se sujeitava para permanecer em pé – e, sobre a moto, em posição quase que deitada, se regozijava com um bando de iguais vermes que também rastejavam, céleres, pelas ruas e avenidas. Pessoas, vermes e motos se misturavam, em perfeita simbiose entre homem/bicho/maquina.

Quando, finalmente, foi apeado do poder – e o foi por conta de um povo que já não aguentava mais as desventuras que um momento de insanidade coletiva fez com que sua loucura se derramasse sobre toda uma nação – demorou a se conformar com o ocorrido. Percorreu o país, durante a campanha eleitoral e nas poucas viagens a trabalho, depois de eleito, devidamente empalado, ereto, qual fantoche manejado por asseclas; mas, depois da derrota, não mais permitiu que lhe empalassem e nem insistiram nesta conduta já desnecessária. As poucas fotos tiradas já não o encontravam sorrindo; com um olhar sisudo e choroso, como poucas vezes exibido em público, estavam evidentes os dissabores e estragos que a derrota produziu sobre a sua pessoa. Ninguém mais se preocupava com a postura derrubada, queixo voltado sobre o abdômen, a baba escorrendo pelos cantos da boca, cabelos empastelados e mal cortados. E mais nenhuma palavra disse, a partir de então.

Dias antes de abandonar o palácio presidencial, foi visto, quase irreconhecível, lambendo uma farofa amarela que caíra ao chão enquanto comia restos de um prato qualquer num fundo de galinheiro. A roupa suja da comida respingada, o cabelo ensebado e os restos de gorduras nos dedos, deixaram uma imagem de sujidade nunca antes vista num governante. Foi nesse ocaso que a esposa, convencida de que outra solução não havia, exortou o marido e os familiares a deixarem a residência oficial antes mesmo do prazo final para tanto. No momento da partida, ela se voltou para o palácio com lágrima nos olhos, abaixou-se na grama para, de joelhos, fazer uma despedida plangente, mas adredemente planejada para ficar nos registros históricos. Atrás dela o marido, arcado e mirando o chão, bem como filhos e agregados, todos se mostravam constrangidos, em posição de respeito. Feitas as orações silenciosas, o presidente, agora livre para todo o sempre do palo que o suportou inúmeras vezes, e os seus familiares, puderam, a mulher na dianteira e os demais em sequência, um após outro, acomodar seus ventres na relva do lugar. E assim rastejaram, desolados, chorosos e em decomposição, quase que invisíveis por entre as folhas da grama alta, vagarosamente e em fila indiana, em busca dos esgotos que lhes cabiam.





3 comentários:

  1. Parece verídico. É raro, mas acontece sempre.

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  2. Pelo amor de Deus....nunca jamais, imaginei ler algo tão Perfeito e digno de ser execrado e condenado às profundezas do Limbo.....parabéns Ezio. Vc é fera !!!!!!

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  3. Tempos sombrios....será que estão chegando ao fim?

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