Quem o vê, e são poucos os que agora conseguem vê-lo rastejando informe e desengonçado pelo gramado nas imediações do palácio presidencial que lhe fez as vezes de covil nos últimos anos, não consegue sequer imaginar que esse ser rastejante é o mesmo que governou o país com mãos de ferro e envoltas em sangue até há poucos meses.
O gramado palaciano, outrora verde e viçoso,
costumeiramente aparado com esmero por especialistas designados pelos melhores
paisagistas da terra, agora não é nem sombra do orgulho que fincou pé no
passado e tampouco é lembrado pela pujança de outrora. Sem as roçadas
necessárias e sem o rastelo para recolher as folhas secas que vão se lhe
entranhando, tudo não passa de um pasto-general apodrecido e propício para a
criação de todas as espécies de animais rasteiros que se criam nos ambientes abafados
pelo calor e ao mesmo tempo umedecido pelas chuvas de verão que assolam o
planalto em certas épocas do ano. E é neste ambiente putrefato que o verme
agora rasteja, quase que invisível
e misturado com o que há de mais repugnante no seu meio, rumo aos esgotos
clandestinos, únicos recônditos que talvez possam, eventualmente, protegê-lo
das ressequidas intempéries invernais que o destino inexorável lhe reserva.
O capitão rasteja ofegante, exausto,
e vai derrubando as crostas da pele encurvada pelo caminho; são crostas que se
despregam ao contato com a relva, grandes placas pretas espiraladas que se
soltam com certa facilidade; o ser não tem mais o vigor físico que um dia
ostentou pensando que fosse um vigor infinito. Ele não rasteja sozinho e nem
tem ânimo pra seguir à frente do cortejo. Quem lidera a marcha é aquela que foi
sua companheira dos anos em que se sentiram bafejados pela sorte; qual sombra
de uma mocidade e beleza morena que já não adorna mais a sua existência, só lhe
cabe rastejar incansável, servindo de guia para o marido encarquilhado e
choroso que lhe vem logo atrás. O destino reservou a ela o mais cruel dos
papeis, o de servir de precursora para o séquito formado pelo marido, pelos
filhos, enteados e agregados vários e incertos que, em fila indiana, lhe
acompanham os passos, obedientes e cambaleantes, qual dejetos enxotados da
história e enviados rumo à escatologia, em seu sentido bíblico mais abjeto e
repugnante que se possa conceder, que reduzirá a família inteira ao pó
malcheiroso e esvoaçante de um enxofre amarelo característico.
O capitão rasteja, a bem dizer, desde
os imemoriais tempos de caserna, quando se destacava nos exercícios castrenses
que exigiam a locomoção rápida através de movimentos realizados com o ventre na terra: poucos colegas tinham a
habilidade de se deslocar sob cordas e obstáculos de madeira colocados quase
que ao rés do chão e, esfregando cara, peito, barriga e pernas no solo marrom,
atingir o final do trajeto, ainda que a custo de esfolados e arranhões em todo
o corpo. Se gabava, inclusive, dos feitos que obtinha nestas provas, propalando
o quanto apreciava a movimentação que mais o fazia se parecer com um réptil
cracolento, porém rápido e indomável. Chegava ao ponto final, com a baba
empoeirada escorrendo pela boca e pelo nariz escalavrado – mas chegava feliz e
exultante, reconhecendo no seu proceder as caminhadas de um lagarto esperto e
faceiro. Era assim que se realizava.
Detestava a posição verticalizada. Nas
práticas marciais, gostava das lutas que se desenrolavam no tatame; lutava
deitado, por mais que o seu comandante insistisse na luta em pé. Muitas vezes
teve que ser amparado sobre as próprias pernas, cambaleante, sustido pelos
braços fortes dos homens da instrução. Condoído com a fragilidade do
subordinado, que não conseguia se manter ereto, seu treinador o protegia,
fisicamente, inclusive, da chacota dos colegas de turma – e não é preciso dizer
do alento que o capitão sentia na proteção dos braços fortes que o enredava.
Quando foi lembrado para presidente,
reagiu como qualquer verme poderia reagir: encurvado em uma cadeira na sala de
estar da sua casa, sorriu um riso frio e desconfiado, sem atentar para um grão de
ramela que estava cristalizado no seu olho direito desde o amanhecer daquele
dia infausto para toda uma nação. Não demonstrou alegria e nem tristeza; antes,
pelo contrário, não entendeu direito do que se tratava e nem o que o esperava
no exercício do cargo. Olhou para o chão e se viu fazendo uma penosa campanha
eleitoral, se arrastando entre um compromisso e outro pelo país afora, indo num
mole-mole sem fim.
Do costume de andar curvado logo passou
a andar de barriga, que era como se sentia bem – e assim andava triunfante,
porque nesse movimento basicamente só era acompanhado por poucos. Era um
sacrifício danado colocá-lo em pé, principalmente para as futuras atividades
palacianas. Nada o fazia permanecer verticalizado; por fim, tiveram que, atitude
extrema, recorrer ao empalamento para que ninguém percebesse o quanto de dobras
já possuía em seu corpo encarquilhado.
Foi empalado numa manhã de
segunda-feira, pelos seus assessores mais próximos, que apostavam todas as suas
fichas no voto de uma população acostuma desde seus ancestrais, a se rastejar
em busca das migalhas do poder. A empalação foi feita na presença de poucos
familiares, em operação que se pretendia esconder do grande público. Sempre sob
o comando da morena esposa: invocando Deus acima de todos e com Jesus na
camiseta branca, ela ordenou, sem piedade e em alto e bom, que lhe
atravessassem o corpo, de baixo para cima, com uma longa e delgada estaca de
eucalipto rosa. Foi assim, com um único golpe certeiro e presto, que
conseguiram o efeito prático de colocá-lo na posição vertical que se espera de
todos os seres humanos, principalmente dos governantes.
Governou feito um déspota, exaltando
a tortura dos porões de uma ditadura cujas feridas ainda não estavam
cicatrizadas; comandou grupos de extermínios organizados em milícias e permitiu
a prática das mais ignóbil corrupção, inclusive no âmbito familiar; desdenhou
da vida alheia, pregou a violência contra as mulheres, brindou os negros com
ditos racistas e espezinhou homossexuais, sempre sob os aplausos daquelas que,
aos seus pés, rastejavam como ele rastejaria se não fosse o empalamento que era
obrigado a suportar nas aparições públicas. Nas vezes em que se livrava da
estaca, rapidamente se deitava ao chão e fazia uma das suas brincadeiras
preferidas: flexões de braço, com o corpanzil rente ao chão. Era diversão na
certa, para ele e para seus seguidores.
A propósito da solução encontrada pela
assessoria, teve sérias complicações de ordem estomacal e intestinal, que
outras coisas não eram senão os efeitos danosos dos prolongados usos da estaca
que lhe atravessava as entranhas. Passou por diversas e delicadas cirurgias, com
as mais diferentes desculpas: uma vez disseram que uma lagosta inteira e não
mastigada teria trancado seus intestinos; em outra ocasião, foi dito que um
bagre africano lhe perfurara a parede do estômago; enfim, uma série de
desculpas incríveis para esconder o verdadeiro problema do grande público. Até
a ideia de um pseudo-ataque de arma branca, desferido por um improvável inimigo
político, chegou a ser arquitetado, tudo na tentativa de esconder os efeitos do
doloroso empalamento.
Quando de uma inesperada pandemia,
provocada por um vírus letal e desconhecido, dizimou uma parcela significativa
da população do seu país, viu no acontecimento uma oportunidade para se livrar
de pobres e de velhos indefesos, que, no seu sentir, geravam custos adicionais
aos cofres públicos. O seu gosto pela morte se mostrou, então, em sua
plenitude: impiedoso, brincou, zombou, riu de gargalhar, com as dificuldades
respiratórias dos moribundos. Foi um dos momentos em que mais se mostrou feliz
durante o curso do seu mandato; nunca disfarçou o gosto delirante pela morte
alheia e no seu semblante era visível que apreciava a visão do corpo inerte da
pessoa, à espera da sepultura. Se deleitava olhando para um caixão, vendo o
corpo em vias de ser consumido pelos vermes com que tanto se assemelhava. Seus
olhos brilhavam, incontidos, externando o prazer mórbido, compulsivo e indisfarçável
com essas cenas que viraram rotinas no país durante a disseminação do vírus.
Negou-se terminantemente a prestar os socorros oficiais que estavam ao seu
alcance contra a mortandade que se avolumava dia após dias e nem cuidou de
auxiliar as famílias enlutadas, angariando, com isso, uma série de repulsas à
sua conduta.
Em tempos de baixa aceitação popular,
descobriu nos passeios de moto um escape para o infortúnio que se avizinhava,
já que a crescente queda de popularidade o levaria à perda do poder. Era sobre
uma motocicleta que podia, desempalado provisoriamente, deitar-se, curvar-se na
posição que tanto gostava e, tal como um ser rastejante, delirar em rides
furiosos pelas ruas das cidades que visitava – e sempre acompanhado por uma
imensidão de insanos, todos pobres de bolso e de espírito, que, ao jeito do
líder, também se compraziam, reclinados e rastejadores, com a defesa da
tortura, com a morte lenta dos enfermos, com a misoginia, com o racismo e com
todas as demais formas capazes, ainda que por vias tortas, exaltar uma duvidosa
supremacia branca e elitista.
As motociatas, assim chamadas pela
imprensa, se constituíram no auge das suas aparições públicas; nelas ele se sentia
confortável na medida em que podia se ver livre do empalamento. Era então que se
curvava em sua infinita baixeza, tal como gostava de fazer e, quase que de modo
imperceptível, agia como um verme vergado sobre o peso do próprio corpo, que
tanto era do seu agrado – e lambia terra do caminho, subordinado aos desígnios
da história. De verdade, detestava o
empalamento, a que era obrigado a suportar por imposição da esposa e dos
assessores mais próximos, únicos que sabiam efetivamente dos sacrifícios que se
sujeitava para permanecer em pé – e, sobre a moto, em posição quase que
deitada, se regozijava com um bando de iguais vermes que também rastejavam,
céleres, pelas ruas e avenidas. Pessoas, vermes e motos se misturavam, em
perfeita simbiose entre homem/bicho/maquina.
Quando, finalmente, foi apeado do
poder – e o foi por conta de um povo que já não aguentava mais as desventuras
que um momento de insanidade coletiva fez com que sua loucura se derramasse sobre
toda uma nação – demorou a se conformar com o ocorrido. Percorreu o país,
durante a campanha eleitoral e nas poucas viagens a trabalho, depois de eleito,
devidamente empalado, ereto, qual fantoche manejado por asseclas; mas, depois
da derrota, não mais permitiu que lhe empalassem e nem insistiram nesta conduta
já desnecessária. As poucas fotos tiradas já não o encontravam sorrindo; com um
olhar sisudo e choroso, como poucas vezes exibido em público, estavam evidentes
os dissabores e estragos que a derrota produziu sobre a sua pessoa. Ninguém
mais se preocupava com a postura derrubada, queixo voltado sobre o abdômen, a
baba escorrendo pelos cantos da boca, cabelos empastelados e mal cortados. E mais
nenhuma palavra disse, a partir de então.
Dias antes de abandonar o palácio
presidencial, foi visto, quase irreconhecível, lambendo uma farofa amarela que
caíra ao chão enquanto comia restos de um prato qualquer num fundo de
galinheiro. A roupa suja da comida respingada, o cabelo ensebado e os restos de
gorduras nos dedos, deixaram uma imagem de sujidade nunca antes vista num
governante. Foi nesse ocaso que a esposa, convencida de que outra solução não
havia, exortou o marido e os familiares a deixarem a residência oficial antes mesmo
do prazo final para tanto. No momento da partida, ela se voltou para o palácio
com lágrima nos olhos, abaixou-se na grama para, de joelhos, fazer uma
despedida plangente, mas adredemente planejada para ficar nos registros históricos.
Atrás dela o marido, arcado e mirando o chão, bem como filhos e agregados,
todos se mostravam constrangidos, em posição de respeito. Feitas as orações
silenciosas, o presidente, agora livre para todo o sempre do palo que o suportou
inúmeras vezes, e os seus familiares, puderam, a mulher na dianteira e os
demais em sequência, um após outro, acomodar seus ventres na relva do lugar. E assim
rastejaram, desolados, chorosos e em decomposição, quase que invisíveis por entre
as folhas da grama alta, vagarosamente e em fila indiana, em busca dos esgotos
que lhes cabiam.
Parece verídico. É raro, mas acontece sempre.
ResponderExcluirPelo amor de Deus....nunca jamais, imaginei ler algo tão Perfeito e digno de ser execrado e condenado às profundezas do Limbo.....parabéns Ezio. Vc é fera !!!!!!
ResponderExcluirTempos sombrios....será que estão chegando ao fim?
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