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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Conto - Normal

 

Normal, é o que eu gosto de ser. Não sou dado a extravagâncias, de nenhuma ordem. Quero dizer, nada de esquisitices ou de excentricidades. Prefiro as coisas comuns, triviais. Vivo dentro da normalidade. Igual todo mundo. Detesto ser diferente, por atos ou palavras, por roupas, por adornos pessoais ou, sei lá, por qualquer outro negócio. Não sou dado a fantasias, a invencionices ou a manias. Detesto balda e vareio particulares pelo simples fato de que isso atrairia as atenções alheias sobre a minha pessoa, o que para mim seria insuportável.

Aprecio passar despercebido, dentro do comportamento esperado; por isso é que me encerro em minha própria vivência e permaneço alheio ao mundo que nos cerca. Tanto quanto possível, claro. Tenho poucos entretenimentos; poucos, porém saudáveis. Por exemplo, aprecio contar quantos miriápodes eu mato por dia, sobretudo em lugares úmidos, onde estes bichinhos aparecem. Dou a eles o nome de trenzinhos, pelos graciosos trejeitos que fazem ao caminharem. No pátio do estacionamento do supermercado onde trabalho, por exemplo. Eles vão saindo das trincas dos ladrilhos ou das gretas entre o piso e as paredes – e é então que eu os caço. Vão em alta velocidade e tenho que ser esperto para esmagá-los. Nem sabia que eram da classe dos miriápodes; só soube disso recentemente, pesquisando na internet: é assim que classificam os inofensivos piolhos-de-cobra, pequeninos seres pretos com centenas de patas. Para mim não importa o nome pomposo, nem quantas patas têm. Continuam sendo meus trenzinhos.

Vou esmagando e contando: vejo um aqui, e raspo a sola do sapato sobre ele; ali outro, dois. Lá um terceiro, pimba! E já são três. E depois, quatro, cinco, seis. E assim sucessivamente. Até atingir a meta que me impus na ocasião. Adoro me desafiar. Estabeleço objetivos, que devo cumprir em determinado tempo. Me imponho regras, nada é aleatório nessa arte de esmagar trenzinhos. Não paro enquanto não chegar a dez. Quando chego ao último, uma certa frustração me atinge. E então eu recomeço, às vezes até diminuindo a meta, quando sinto impossível cumprir novamente o mesmo número. Ou aumentando. Confesso que é difícil parar.

Em épocas de chuvas, aparecem com maior frequência. O desafio dos dez fica mais fácil de cumprir e então aumento a meta: me imponho liquidar 15. Demora um pouco mais, mas consigo. E assim vou fazendo todos os dias, antes de entrar no trabalho, logo de manhã. Na hora do almoço, me imponho um limite maior. Estou mais desperto e digo de mim para comigo mesmo: tens que conseguir liquidar 20! Almoço correndo e me ponho à caça: atraso-me um pouco na entrada após o almoço, mas, enfim, que glória! Vinte trenzinhos na conta.

Meu chefe não gosta de ver os rastros do meu sapato na guarita. Nem dou bola. Se ele pede com grosserias, fica muito bravo, então eu limpo o lugar. Limpo mais ou menos, quero dizer, até ele sair de perto. É um cara chato e vive pondo defeitos no meu serviço. Chega a ser ríspido, inclusive. É que ele não compreende o quanto o meu trabalho é muito chato. Ele é chato e o meu trabalho é chato. Veja: sou encarregado de registrar o fluxo de carros entrando e saindo do estacionamento: anoto o número da placa num papelzinho e registro a entrada; depois, recebo de volta o papelzinho e registro a saída, para evitar que entrem carros acima do limite. São 50 vagas, um número elevado, o que explica algumas confusões que eu faço.

É um trabalho repetitivo e por demais enfadonho. Não gosto destas repetições. Não sou um autômato, não tenho paciência para essas tarefas maquinais. A mim me parecem sem qualquer sentido. Mas é o trabalho que tenho. E eu preciso dele. São carros e mais carros, entrando e saindo todas as manhãs. Entrando e saindo todas as tardes. Todos os dias. Todas as semanas. Meses, enfim, numa rotina de entra e sai que não acaba nunca. Para passar o tempo, fico pensando nos trenzinhos e, por vezes, me perco na contabilidade e entram mais carros do que cabem. E lá vem o meu chefe, de novo, o babaca, me dando bronca. De vez em quando ele pergunta: onde é que está com a cabeça, rapaz? Eu nem respondo. Finjo que não escuto.

Para tornar o meu trabalho mais gostoso, já tentei de tudo. Experimentei contar os carros por categoria: contar até 5 fuscas amarelos entrando no estacionamento. Ou, então, cinco verdes. É até gostoso, mas não me dei bem nisso; os fuscas são mais raros e não suporto deixar de cumprir as tarefas que me imponho. Fazer a contagem com carros mais modernos, também já tentei. Mas não tem graça, pois são muitos e previsíveis; muito fácil de concluir o trabalho.

Gosto mesmo é de contar os trenzinhos. Vez ou outra, quando minhas metas são maiores, fica difícil encontrá-los. Encontrar 40, por exemplo, já vi que é quase que impossível, demora muito encontrá-los – e é o que justifica, claro, meus atrasados na portaria. Essa caçada não é coisa assim tão fácil de se fazer; exige olhos atentos para qualquer movimentação.

Requer ligeireza, pois que logo o dito cujo some nas frestas ao menor sinal de minha aproximação. Outro ponto que me faz atrasar no trabalho é quando eu me perco na contagem. Vez ou outra acontece. Porque sou criterioso em tudo que faço: se a minha tarefa era eliminar 25, por exemplo, então não posso me dar ao luxo de me contentar com apenas 24. Se, ao contrário, ao invés de 25, eu percebo que matei 26, então eu devo chegar aos trinta, ou seja, chegar a um número mais redondo. Sempre em múltiplos de cinco. Enfim, são coisas que apenas dificultam essa minha atividade particular e que poucas pessoas compreendem. Pensam que é fácil caçar trenzinhos. Engano. Aliás, nada é tão fácil como parece. E meu chefe é um incompreensível. Irascível. Pede demais. Manda demais. É exigente demais. É fora de qualquer medida. Dizem que ele é perfeccionista, mas isso eu não sei se é. Para mim, ele pode ser tudo nessa vida, menos uma coisa: decididamente, ele não é normal!

7 comentários:

  1. kkkkkkk. Ótima crônica, Ezio. Normal é de difícil compreensão. Abraço.

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    1. É mesmo, Marilene. A anormalidade não é necessariamente incompreensível.

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  2. Beleza!
    Cada mania com seu louco.
    Eu, por exemplo, gosto de encontrar "a" com acento grave indevido em qualquer texto, ou seja, crase mal feita.
    Li este aí quatro vezes e não encontrei. Vou ler novamente.

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    1. Santino, espero que não repita a leitura muitas vezes. Vai que encontra?

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  3. Um conto muito especial.
    Eu gostaria de ver esse roteiro como parte de alguma peça do teatro de Ionesco, alguma daquelas falas em que o personagem 'se ausenta' por instantes do desenrolar dos acontecimentos, e nesse tempo suspenso, se dirige à plateia.
    Penso numa apresentação da "Cantora Careca", que presenciei no início da década de 80 em Campinas...

    Parabéns pelo conto!

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    1. ah, antes que me esqueça, cabe um P.S.:
      "Paz & Amor, bicho!"

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    2. Clarice, numa vi nada de Ionesco. Mas a absurdez, vez em quando, até que vai bem, não é? Forte abraço. Paz e amor! Sempre.

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