Conhecemos a Costa do Descobrimento nos anos ‘80. Foram sete viagens: quatro de ônibus, duas de carro e uma, a última, de avião, em ’98. Porto Seguro é deslumbrante: verdes mares e vastos coqueirais, sobretudo os que se avistam do alto do Arraial d’Ajuda. A preguiçosa travessia do indolente Buranhém, numa pequena balsa; o agito da noite na Passarela do Álcool. Nas areias de Trancoso, a liberdade do corpo. Mais ao lado, Santa Cruz de Cabrália disputa com PS a duvidosa honra do desembarque de Cabral; é onde desemboca o caudaloso e temido João de Tiba. E de onde se alcançava, de barco, a ilha de Santo André e os recifes, o Dentro e o de Fora.
As viagens de ônibus, pela São
Geraldo, a partir de São Paulo, duravam entre 26 e 28 horas. Em Eunápolis,
baldeávamos para o ônibus da Sulba, que nos deixava em Porto Seguro. Se de carro, íamos parando: Cabo Frio,
Guarapari, Aracruz, Conceição da Barra (e nas dunas de Salinas), Teixeira de
Freitas, Eunápolis e em outras várias.
Mais para o sul baiano, desbravamos a
até então desconhecida Cumuruxatiba, em meados dos anos ’90. A vila fica no fim
de uma estrada de areia que sai de Prado. Com chuva, ninguém passava pela ponte
de madeira, que facilmente submergia. No lugar, havia apenas duas hospedagens e
um único restaurante. A compensação estava nas falésias da praia da Japara
Grande: o Brás gentilmente abriu, dois dias seguidos, a sua barraca só para nos
atender, Ber, Marina e eu, únicos fregueses naqueles dias de pós-carnaval.
Serviu-nos peixes e caranguejos, caçados na hora, na foz do riacho.
Na PS da época, o incipiente comércio
era dos nativos. Tudo era precário; a água encanada causava estragos nos
desavisados. Cigarros e dinheiro, levávamos na mochila. Banco, apenas o BB. Ônibus
para RJ e SP, apenas um por dia. As pousadas eram poucas. Um único hotel. Dois
ou três restaurantes. As estradas eram de terras; as pontes, precaríssimas.
Nenhum luxo, apenas o essencial.
Mas sobrava aconchego nas pousadas,
disponibilizadas pelos moradores locais; a comida caseira era farta e da melhor
qualidade; os almoços e jantares algumas vezes eram improvisados nas casas dos pescadores.
Dona Umbertina, mulher pobre e sem recursos, servia um prato feito saboroso, na
sala da própria casa, perto do cais: creme de feijão, arroz, peixe e camarão.
PF saboroso e barato. Rica de coração e de bondade, acolhia crianças desamparadas,
que por ali não faltavam. Tinha dois filhos do ventre e outros oito ou dez
adotados, indistintos. Salvava os mochileiros menos, digamos assim,
endinheirados, e por eles era ajudada. Uma perfeita harmonia.
PS era o lugar ideal para se desligar
do mundo. E, desligados, fomos surpreendidos, por exemplo, com o Plano Cruzado:
numa tardinha de fevereiro de ‘86, não aceitaram nosso até então habitual cheque
para pagamento dos beliscos: “Agora só com dinheiro vivo, que ninguém sabe como
vão ficar as coisas”. “Que coisas???”. “Esse negócio aí, do cruzado”. “Cruzado???”.
Foi também em ’86, mas no mês de novembro, que vimos a agitação da cidade, surpreendida
com a morte de Ana Magalhães, de apenas 29 anos de idade – era a filha mais
nova do então amado/odiado ACM, que se suicidava. Ouvimos reações as mais
variadas possíveis, incluindo algumas não tão nobres, em relação ao pai da
moça.
No ano anterior, mais precisamente em
março de ’85, a tv da pousada noticiava, no café da manhã, o alvoroço dos
militares em Brasília, que se negavam a passar o poder para os civis. A dúvida era
sobre quem assumiria a Presidência da República, na sucessão do general
Figueiredo – e só então, temerosos, soubemos da não-posse de Tancredo e da gravidade
do seu estado de saúde. E o resto é História, com a inicial maiúscula.
Nas últimas décadas muita coisa mudou.
O modesto aeroporto foi ampliado e por ele desembarcaram ingleses, franceses e
italianos – e um ou outro argentino. Compraram casas, sobrados, prédios
comerciais. Compraram tudo. Construíram resorts e parques aquáticos. Os
nativos foram alijados. Vivem agora nas periferias. Muitos viraram empregados
dos gringos. As lojas de grife fazem a alegria das madames, incluindo
joalherias; as aeronaves particulares cruzam os céus da região. A arquitetura
colonial (bem conservada, diga-se) e as paisagens cinematográficas passaram a
ter ricos e famosos como público habitual.
ET: estima o Google que rodamos aproximadamente 22.000 Km, na BR 101 e adjacências.
Excelente texto sobre um paraíso que, lamentavelmente, foi invadido. Parabéns!
ResponderExcluirEzio, verdadeiras aventuras que nem todos se arriscavam a enfrentar. Acessos complicados e nenhum conforto, mas, como dizem os que delas participaram, como você, de um encanto inesquecível. A realidade nos mostra , ainda, lugares lindos que merecem ser visitados, não obstante os desequilíbrios que mencionou. Muito bom seu texto! Abraço.
ResponderExcluirMe fez lembrar de quando conheci o sul da BA em Jan/FEV de 1973. Sua verve fez o seu excelente relato com muito mais riqueza do que eu tinha mas minhas recordações.
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