Em noites de sono desequilibrado e inconstante, fico num tal de dorme e acorda, me viro de um lado e para outro da cama. Me levanto e logo deito de novo. Fico num vai e volta que não me aguento. Durmo, não durmo, fecho e abro os olhos. Algumas vezes eu durmo profundamente mesmo estando acordado; outras vezes eu me sinto desperto por inteiro, ativo e em plena lucidez mesmo estando dormindo o mais pesado sono dos justos. E nessas ocasiões eu caminho dormindo, feito um alucinado e sem rumo certo. Eu ando, ando e ando. Ando dormindo ou acordado, como um sonâmbulo. É o que mais tenho feito. Ando pela casa, pelo quintal, ando pelas calçadas, ruas e praças da cidade. Quase todas as noites é assim. Dobrar a dose do sonífero pouco ou quase nada resolve.
Algumas vezes sonho que estou andando. Isso acontece quando eu durmo sem perceber, ou seja, pensando que ainda estou acordado. E vou andando, absorto e sem destino. Noite dessas, para a minha grata surpresa, encontrei por mero acaso o Padre Francis, um antigo professor meu. Provavelmente eu estava sonhando, pois que o Padre Francis já é morto há muito tempo. Morto e enterrado no antigo cemitério do campus da Universidade.
E no campus caminhávamos como dois velhos amigos. Conversando amenidades, meio que distraídos. Ambos contemplativos. Era noite sem lua, de um escuro profundo, disso em me lembro bem, mas com tudo iluminado ao nosso redor. Tinha uma luz que simplesmente vinha, no escuro da noite. Como se fosse um sol que brotasse ali do chão, aos nossos pés, iluminando nossos passos despretensiosos.
- Professor, ia lhe dizendo, como se estivéssemos no meio de uma longa conversa. Professor, essa luz assim, tão intensa, dentro dessa noite escura, noite sem lua e sem estrelas ... Não lhe assusta, professor, esse brilho ofuscante que vem do nada?
Em tom professoral, quase paternal, Francis me tranquilizou:
- Não há com que se preocupar, jovem. Não é nada de extraordinário. Não há motivo algum para apreensões. Imaginemos, para apaziguar nossos espíritos, que esta é a luz da noite escura, de Juan de la Cruz. Vamos pensar assim, poeticamente, que tudo fica melhor.
E riu após essa resposta. Francis sempre ria. Ria um riso aristotélico.
Eu perguntei:
- Juan de la Cruz, o santo poeta? O da Noite Escura da Alma?
- Ele mesmo. Aproveitemos essa luz que nos ilumina, que ilumina nossas almas. Só isso e mais nada. E caminhemos, pois, meu jovem.
E, mudando de assunto, o padre assim falou:
- Eu gosto de caminhar por esse campus. Aqui tudo é bonito. Sabe o que um poeta diria das belezas deste lugar? Isto é, o que um poeta diria para os alunos que por aqui passam e não observam nada ao seu redor?
Sem esperar minha resposta, o religioso recitou, pausadamente e com voz firme:
No arremedo de hendecassílabos versos
um poeta ignoto, já mal ajambrado,
professa: caros caminhantes dispersos,
eis um campus para sempre ser lembrado.
E acrescentou, agora sem versificar
- Olhe estes prédios, caro amigo. Já percebeu a adequada sintonia entre as construções mais novas e as mais antigas? O que poderia delas dizer um poeta para os alunos desatentos? Ele, por certo, recomendaria aos alunos:
Caminhando entre prédios novos e antigos,
desbravem raras e diversas belezas.
Além de conhecimento e de cultura,
do clima gostoso e de outras sutilezas,
mirem uma variada arquitetura.
Depois contem tudo para os seus amigos.
Que bonito, pensei. Não conheço nada de poesia, mas os versos, ditos assim de improviso, me encantaram. Nada pude dizer, fiquei sem palavras. E nada mais foi dito entre nós naquela noite. Pois enquanto eu perscrutava os tais prédios, Francis já não estava ao meu lado. Simplesmente não o vi mais. Debalde procurei por todos os espaços, por entre os prédios. Olhei pelas escadas e não o vi. Procurei Francis em cada uma das esquinas e praças da cidade. Revirei os cômodos da minha casa; atentei para todas as reentrâncias da sala e da cozinha. E nada de encontrar meu interlocutor. Francis já não era.
Resignado, fui para o meu quarto, que estava escuro como breu. Não acendi a luz. Nada pude ver, claro – nem sequer pude me ver na cama, dormindo profundamente, porque tudo estava escuro. Como breu.
Hendecassílabos versos... O Chat GPT me disse que são versos poéticos, com onze sílabas métricas. Me explicou também sobre umas tais sinalefas, junções de vogais adjacentes, escanções e não sei o que mais. Não entendi muita coisa, mas que o religioso mandou bem, isso é verdade. Um poeta de verdade.
Algumas noites depois, a combinação de cinco ou seis diferentes comprimidos dos meus soníferos prediletos não fez efeito algum. Então andei e andei e andei. O que foi bom, de certo modo, porque pude ouvir mais algumas versificações do meu antigo mestre. De novo em noite escura, de novo numa noite que um clarão brotava da terra. No campus, de novo, claro. Era a mesma conversa anterior, fluindo normalmente como se não fora nunca interrompida.
Era Padre Francis falando:
- Sabe o que mais diria o poeta? Escuta isso, jovem:
Digitem mensagens, propalem sem medo.
Falem quão agradável é nosso campus,
deleitem-se e de nada façam segredo.
Publiquem nas revistas e nos jornais,
descrevam nas suas redes sociais
ecoem para além das Minas Gerais!
- Professor - disse-lhe eu. Digitar mensagens? Publicar nos jornais?
- Sim, jovem: muitas coisas bonitas, tais como estas aqui do campus, não podem ficar egoisticamente guardadas, você há de convir comigo. Devem ser compartilhadas, para gozo de todos, compreende?
- Se é assim, pergunto-lhe: então você conhece o Instagram? Facebook? Tik tok, essas coisas? Já ouviu falar delas, Padre?
- Sim, sim. Já ouvi sobre isso. Parece que funcionam bem. É o que me dizem. Bons meios de comunicação que vocês têm hoje em dia, não é? A propósito, então ouça:
Sabendo vocês que o Instagram não tem dono,
mostrem nossas suaves tardes de outono.
Sendo tempo do frio mais rigoroso,
que se extasiem com um fog glamoroso.
Convidem, pelo perfil do Facebook,
para que contemplem, lá do prédio nove,
o lindo pôr do sol que se vê da PUC.
Não encontrarão viva’lma que desaprove.
Para o Tik tok, filmem nosso pé de ipê:
florido, vale um sorvete colorê.
- Excelentes versos, Professor! Você agora fala mais como um poeta do que como um professor. Um professor-padre-poeta nato – e eu nunca soube que versejava. Uni, duni, tê, um sorvete colorê ... Essa é das antigas, da minha infância. Desenterrou isso de onde, Padre Francis? Desenterrou...
A esta pergunta, Padre Francis se deteve, súbito. Ficou sério É certo que não gostou da minha fala. Entre enigmático e irritadiço, sem disfarçar o rosto carrancudo, dos seus finos e agora apagados lábios saíram essas palavras:
- Verdade, jovem. Verdade... Ultimamente tem sido assim: vivo desenterrando coisas ... Vivo assim ...
Depois descemos por uma calçada multicolorida, de cujos degraus sobressaia o desenho sinuoso de troncos de árvore com folhas verdes em forma de rostos humanos, Francis logo voltou à carga, quebrando o silêncio repentino que ameaçava nos constranger. E recitou, como que se dirigindo a um público invisível:
Expeçam, célere, edital de proclama.
Espalhem que aqui temos amplas calçadas,
todas caprichosamente decoradas,
contornando jardins de aparada grama.
Temos alfazemas de boa fragrância,
que perfumam vias, encurtam distância.
Temos caminhos, trilhas e bons acessos.
Luzes que propiciam plenos sucessos.
Confesso que, para mim, aquilo foi demasiado para uma só noite. Não me lembro de como terminou esse encontro. O nosso último e derradeiro encontro. Não sei se dormi. Não sei para onde fui, se é que fui para algum lugar. Dias depois tive de consultar meu médico. Já não era sem tempo, pensei. Pois que algumas coisas estranhas me aconteciam. Não sei se em sonho quando dormia ou se quando acordado. Por exemplo: passei a sentir o cheiro das alfazemas. De dia e de noite. Em todos os lugares. Por todos os cantos. Um cheiro azulado e embriagante. Me via enroscado nos troncos de uma árvore que desciam os degraus de uma escada, cujas folhas com cara de gente me assombravam. Não tornei a reencontrar o Francis. Por mais que o procurasse, por mais que ingerisse meus preciosos soníferos, em variadas combinações e quantidades, nada do Francis reaparecer. Lembrei até do quilindrox, do discomel e de outras pílulas mais que o Maluco Beleza tomava. Ingeri tudo isso e muito mais. Foi em vão. Mudei de estratégia e deixei de tomá-los, forçando-me a experimentar a maldita insônia – e nem assim pude desfrutar novamente da companhia do Padre Francis.
Meio que perdido, então voltei aos soníferos. Caminhei pelo campus nas horas mais incertas. Dormi no campus. Sonhei com o campus. Respirei os perfumes do campus. Eu queria reencontrar o Padre Francis, era a minha obsessão. Queria, pelo menos alertá-lo sobre um inusitado São Francisco, feito de metal reciclado, que se apresenta, alto e imponente, no jardim de inverno do campus. Tantas vezes passamos por ali e Padre Francis nunca se referiu a ele em seus versos. Isso era uma desfeita para com o pobrezinho. Imperdoável, pensei.
Depois disso, fiquei vários dias internado. Não sei bem por quanto tempo. Meu médico, coitado dele, sabe de nada: chegou inclusive a falar que soníferos podem funcionar como alucinógenos, provocar visões. Falou bobagens deste tipo. Disse também que, de outro lado, uma prolongada abstenção poderia até piorar ainda mais o meu quadro que, segundo ele, já é alarmante. Mal sabe ele o quanto esses comprimidinhos vêm me ajudando ultimamente – não exatamente para dormir, mas para me dar, digamos, algumas gostosas sensações. Às vezes são inofensivos, mas sempre indispensáveis, é isso que eu tenho percebido. Melhor assim. Servem para me distrair um pouco. Me distraio quando ando dormindo e também quando durmo durante minhas andanças.
De uma coisa me lembro bem. De alta médica, na volta para casa, uma carta me esperava. O carimbo sobre o selo indicava a recente postagem feita aqui mesmo na cidade. Mas sem nenhuma menção ao nome remetente. E nem precisava, pois, dentro do envelope, em letras firmes, uma última estrofe em versos hendecassílabos de certo modo me acalmou:
Ah! No jardim de inverno, feito de latas,
(já quase que dele eu estava me esquecendo)
braços abertos, a todos acolhendo,
está São Francisco, santo menininho.
Traz no peito, logo sob as omoplatas,
dois furos – para abrigo de passarinho.
Nesta calmaria, que há muito não experimentava, continuo a sentir nas minhas narinas o cheiro das alfazemas. De dia e de noite. Em todos os lugares. Por todos os cantos. Nas ruas, nas esquinas e nas praças. E no campus. É o mesmo cheiro azulado e embriagante que insiste em permanecer, indelével.
Na verdade, confesso, eu continuo com insônias difíceis de suportar. Ou então eu durmo enquanto ando. E ando enquanto durmo. E também permanece o claro que brota da terra dentro da noite escura. Em todas as noites.

Insônia inspiradora. Excelente conto, versos belíssimos, parabéns.
ResponderExcluirObrigado. Abraços.
ExcluirQue maravilha de experiência literária, de fato que causou reflexões e sorrisos Aristotélicos.
ResponderExcluirEntão, Samuel. Aristóteles e o riso... Tema central da obra O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Abraços, meu amigo.
ExcluirVocê me encantou. Foi com prazer imenso que li seu texto, rico e poético. Parabéns! Estou aplaudindo você! Abraço.
ResponderExcluirObrigado, Marilene. As belezas do campus da PUC, aqui em Poços, superam a capacidade deste escriba. Grande abraço.
ExcluirParabéns caro amigo! Lindas reflexões esteticamente perfeitas!!!
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