Numa das travessias de balsa que fiz pelo Buranhém, de Arraial D’Ajuda para Porto Seguro, experimentei sublime paz de espírito em elevada contemplação do nada. Absorto e desgarrado do mundo, assim fiquei naqueles instantes, entre um cais e outro. Um marujo, deitado na proa e olhando para o infinito azul celeste, assoviava, hábil, Capim Guiné, gravada por Raul Seixas. O assovio que se sobrepunha ao ronco dos motores e me erguia em êxtase inexplicável. Escutava apenas a música e nada mais. Mirando as águas calmas do caudaloso rio, vivi na ocasião um mágico entardecer.
Capim Guiné, escrita nos idos dos anos 1970,
conta uma história de resistência à ditadura militar. O autor, Wilson Aragão, nascido
e criado no sertão de Piritiba, na Chapada Diamantina, vendo as poucas terras
do pai sendo griladas, assim escreveu: Comprei um sítio, plantei jabuticaba,
dois pés de guabiraba / caju, manga e cajá / Peguei na enxada como pega um
catingueiro etc. Raul Seixas, passando justamente pelas bandas de Piritiba,
num efêmero retiro de desintoxicação, conheceu Wilson e propôs algumas
alterações na letra – e o resto é história, com o sucesso estrondoso de Capim
Guiné na voz do Maluco Beleza.
Os versos Agora veja, compadre, a
safadeza / todo bicho vem pra cá / vem até tamanduá / Está vendo tudo e fica aí
parado / com cara de veado que viu caxinguelê, longe de homofóbicos, se
referem às autoridades, inclusive das altas patentes, que nada faziam para
impedir o esbulho. Ficavam, na sutileza comparativa de Wilson Aragão, paradas, inertes
e sem ação, tal como fica o veado quando vê pela frente um caxinguelê.
Pois
bem: Wilson Aragão morreu há poucos dias, em 23 de maio. O que me resta é guardar
na memória os lindos versos de resistência do poeta baiano, como um grito de
desespero contra as atrocidades dos terríveis anos de chumbo. E guardar também,
indelével, aquela linda tarde em que atravessei o Buranhém ao som da tocante
Capim Guiné, habilmente assoviada por um marujo sonhador.
Belo texto, professor! Parabéns!
ResponderExcluirBelo texy
ResponderExcluirTô Ezio, forte abraço!
Boas lembranças, boas viagens, ótimo texto, parabéns.
ResponderExcluirMaravilha, caro Ezio, parabéns.
ResponderExcluirBela crônica. Parabéns
ResponderExcluir