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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Crônica - Capim Guiné

 

Numa das travessias de balsa que fiz pelo Buranhém, de Arraial D’Ajuda para Porto Seguro, experimentei sublime paz de espírito em elevada contemplação do nada. Absorto e desgarrado do mundo, assim fiquei naqueles instantes, entre um cais e outro. Um marujo, deitado na proa e olhando para o infinito azul celeste, assoviava, hábil, Capim Guiné, gravada por Raul Seixas. O assovio que se sobrepunha ao ronco dos motores e me erguia em êxtase inexplicável. Escutava apenas a música e nada mais. Mirando as águas calmas do caudaloso rio, vivi na ocasião um mágico entardecer.

Capim Guiné, escrita nos idos dos anos 1970, conta uma história de resistência à ditadura militar. O autor, Wilson Aragão, nascido e criado no sertão de Piritiba, na Chapada Diamantina, vendo as poucas terras do pai sendo griladas, assim escreveu: Comprei um sítio, plantei jabuticaba, dois pés de guabiraba / caju, manga e cajá / Peguei na enxada como pega um catingueiro etc. Raul Seixas, passando justamente pelas bandas de Piritiba, num efêmero retiro de desintoxicação, conheceu Wilson e propôs algumas alterações na letra – e o resto é história, com o sucesso estrondoso de Capim Guiné na voz do Maluco Beleza.

Os versos Agora veja, compadre, a safadeza / todo bicho vem pra cá / vem até tamanduá / Está vendo tudo e fica aí parado / com cara de veado que viu caxinguelê, longe de homofóbicos, se referem às autoridades, inclusive das altas patentes, que nada faziam para impedir o esbulho. Ficavam, na sutileza comparativa de Wilson Aragão, paradas, inertes e sem ação, tal como fica o veado quando vê pela frente um caxinguelê.

  Pois bem: Wilson Aragão morreu há poucos dias, em 23 de maio. O que me resta é guardar na memória os lindos versos de resistência do poeta baiano, como um grito de desespero contra as atrocidades dos terríveis anos de chumbo. E guardar também, indelével, aquela linda tarde em que atravessei o Buranhém ao som da tocante Capim Guiné, habilmente assoviada por um marujo sonhador.

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