Fui mordomo,
por muitos anos, de uma família abastada. Pai, mãe e filho único moravam num
castelinho, num alto de montanha, lugar afastado da cidade. O filho sempre foi
excêntrico, de hábitos soturnos e estranhos, razão pela qual, aliás, fui
contratado. A ele eu devotava meus cuidados; fui contratado basicamente para cuidar dele, em tempo integral. Louis, esse era
o seu nome, pouco me notava; nada me exigia de extraordinário.
As minhas
rotinas eram simples: uma vez por dia, deixava a comida dele à porta de uma
edícula, situada nos fundos do terreno, onde ele viveu, recluso, os últimos anos de sua
vida. Pai e mãe pareciam conformados com o isolamento, nada me falavam
sobre isso. Para eles, era como se nada de anormal houvesse nas relações
familiares.
Raríssimas
vezes entrei na diminuta edícula: apenas uma sala, que também servia de quarto,
e um banheiro. Havia uma estante repleta de livros, envelopes e papéis. As paredes eram
cobertas por tabuleiros multicoloridos de xadrez, que o próprio Louis
construíra outrora. Sob uma janela (que nunca vi aberta, aliás), havia uma cama, de molas;
a um canto, um armário de roupas. No centro, uma rara mesa no formato de urna funerária, em cuja tampa havia um tabuleiro incrustado; duas cadeiras gastas e
de assentos puídos completavam o mobiliário. E, sim, havia uma lareira, constantemente acesa, conforme denunciava a
eterna fumaça que se esvaia pela chaminé, abastecida pela lenha que eu pacientemente colhia
pela região.
Louis se
comunicava com o mundo exterior apenas por correspondências. Recebia cartas de
diversos clubes de xadrez epistolar, e as respondia com presteza. E, uma
vez por semana, quebrando o isolamento, recebia alguém para algumas partidas;
todas as sextas-feiras, por volta da meia-noite, um cocheiro trazia um
adversário diferente. Sempre um homem qualquer, sempre um desconhecido. Seguindo
instruções prévias, eu encaminhava o cidadão até a edícula, por uma trilha
iluminada por alguns pares de tochas; depois voltava para o meu posto, na casa da
frente. Quando chegava a madrugada, o visitante deixava a casa, quando então eu fechava o portão com chave. Normalmente a pessoa saia esbravejando pelo
dissabor das derrotas experimentadas. Louis, todos diziam, jogava sempre com as peças
pretas e, invariavelmente, ganhava todas as partidas. Por melhor que fosse o
oponente, Louis era invencível.
Certa noite,
porém, o inusitado aconteceu. Eu conduzi à edícula uma pessoa que, não entendi bem na ocasião, me parecia um tanto estranha; tinha um corpo indefinido e mantinha o rosto escondido sob um capuz. No começo da madrugada é que o caso se deu: eu fui surpreendido com gritos pavorosos, repetidos gritos, que vinham da edícula; gritos que encheram de horror aquela noite de inverno. Apavorado, corri para os fundos do terreno, meio que automaticamente, sem saber direito o que fazer. E então me deparei com a enxadrista - sim uma enxadrista, que vinha pela trilha, em minha direção; estupefato, vi que era uma linda mulher, de
cabelos compridos e loiros, de roupas pretas, farfalhantes, a quem, temeroso, dei passagem.
Soberba, trazia no bonito rosto de meia idade, agora visível, o sorriso franco do triunfo que acabara de
obter. Louis, finalmente, fora derrotado.
Não gosto de
me lembrar da cena que vi na edícula: Louis estava caído no chão, todo retorcido em sua
magrém. Tinha os olhos esbugalhados, com o horror desenhado no seu rosto já normalmente pálido e agora quase sem vida. Arfava com extrema dificuldade até que desfaleceu por completo,
sem que eu nada pudesse fazer.
Na mesa dos
contendores estava razão do acontecido: o jogador de pretas, o pobre Louis, sofreu um duro golpe e foi impiedosamente derrotado com
um magistral xeque-mate, em que as peças brancas formavam, à perfeição, uma cruz nas casas
centrais do tabuleiro.
Louis não
resistiu à visão que se lhe apresentava. Morreu como haveria de morrer qualquer diabo frente
à extraordinária formação das peças.
Nota explicativa: a partida
a que me refiro é um estudo atribuído a Paolo Boi, jogador e problemista italiano
que viveu no Século XVI. É a minha leitura de uma história contada e recontada
à exaustão entre os enxadristas do mundo inteiro. A artística e criativa
formação final poderá ser vista com mais detalhes em http://xpeoes-caparica.blogspot.com/2016/02/sonho-de-americo-costa.html,
dentre outros sites.
Texto maravilhoso
ResponderExcluirCaríssimo Tadeu, muito obrigado por prestigiar o blog. Trata-se, como você bem sabe, de um antigo estudo do problemista Paolo Boi, com minhas adaptações. Grande abraço, meu querido amigo.
ExcluirQue fantástico texto meu grandessíssimo amigo, a tempos que não lia um conto tão bom, me dedicarei a frenquentar seu blog com mais regularidade.
ResponderExcluirMuito agradecido por prestigiar o blog. Será sempre bem vindo. Abraços.
ExcluirO desfecho final, foi o cheque mate do conto de Paolo Boi. Fiquei encantada e intrigada entre ambos!
ResponderExcluirO que me despertou a querer a praticar a leitura assiduamente de seu Blog! Está de Parabéns!
Muito Instigante,me cativou mesmo não sendo uma jogadora de Xadrez, fiquei curiosa para o final!
Abraços Sr. Ezio!
Obrigado, Samantha, por prestigiar o blog. É um estudo feito por Paolo Boi, exatamente como você disse. E nesse estudo a partida termina em forma de cruz, como visto no diagrama. Excelente ideia do italiano, que mostra o lado artístico do xadrez.
ExcluirQue beleza! Fui surpreendida com o final, o que é muito bom quando se lê um conto ou um livro. Desconhecia qualquer fato ligado ao estudo que mencionou rss . Parabéns!
ResponderExcluirSim, Marilene, é um estudo antigo entre os enxadristas. Mostra que o xadrez não é um simples jogo - é também ciência e, sobretudo, arte, como demonstrou Paolo Boi. Abraços.
ExcluirCaríssimo Prof. Ezio, mestre do xadrez e das letras, parabéns por mais um brilhante texto. Parece que senti uma aragem soprando do século XIX, entre as linhas finais, sibilando o nome do Edgar Allan Poe... Não sei se foi intencional, mas o Sr. prestou uma justa homenagem ao autor.
ResponderExcluirNo mais, belíssimo problema e belíssimo conto. Muito obrigado, caro amigo.
Caríssimo Professor Virgílio, Mestre dos mestres do xadrez, obrigado pelas carinhosas, mas, por certo, exageradas palavras. Sim, sou fã de E.A. (tenho predileção especial pelo "Barril de Amontillado"), mas ficaria até sem jeito de tentar uma homenagem ao imortal norte-americano. Um forte abraço e muito obrigado por prestigiar o blog.
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