Acalentei um sonho: queria
ser hippie e me mudar para São Paulo, morar nas ruas e vender artesanatos na
Praça da República. Dali eu sairia pelo mundo, caminhando para onde desse e com
quem fosse. Queria ser um pé na estrada, um sem destino; não queria nem lenço e
nem documento.
Adolescente, meu desejo
foi toldado pela minha mãe, que me fez esperar um emprego estável. Então, já
mais moço, o serviço público me propiciou uma boa parcela das minhas vontades,
na Capital paulista: botei cabelo e barba grandes, bolsa de couro a tiracolo,
camisa suja e calça de brim rasgada; nos pés, tamancos de madeira; na boca,
cachimbo com fumo irlandês, perfumado, fragrante. A efervescência da cidade, a multidão que em
massa compacta se deslocava me enchia os olhos; andei muito pelo centro velho,
perambulei por teatros, restaurantes baratos, bares suspeitos. Esquinas nas altas
madrugadas? Teatros malditos? Cantos menos recomendáveis? Sim, frequentei todos.
São Paulo sempre me
fascinou. Ainda me fascina: multidões que dão anonimato, diversidade culturais,
um frenesi constante e multicolorido. No entanto, alguns vazios me ficaram na memória:
nas Copas do Mundo de 1978 e 1982, as ruas e avenidas ficaram sem viva alma, sem
ninguém. Perambulei pela cidade velha e pude sentir a imensa solidão de perto: na
Avenida Ipiranga e na São João, no Paissandu e na Sé, apenas um ou outro
passante, apressado. Tudo ficava
estranho, sombrio e assustador. Uma cidade morta, fantasmagórica, inerte.
Cidade vazia assim só vi em
outra ocasião, em 1979, quando a grande passeata dos bancários foi o estopim
para uma quebradeira geral. Quanto mais a Polícia Militar reprimia, com bombas
de gás lacrimogêneo e cassetetes, mais os populares aderiam: office-boys, vendedores
ambulantes, comerciários, escriturários, jogaram de um tudo nos policiais: máquinas
de datilografia, cinzeiros de vidro, paus, pesos de papel, canos de armação de barracas
e o que mais estivesse à mão, foram atirados ruas afora.
Trabalhava na Avenida
Paulista. Fiquei sabendo do negócio e saí correndo, por volta das cinco da
tarde. Desci do ônibus no Anhangabaú, subi para a Praça do Patriarca e não vi
mais do que um lúgubre vazio, um oco, um silêncio absoluto. Um ou outro cavalariano
e ninguém mais. Nem mesmo a violenta Polícia do Exército, que era uma
constante, marca registrada nas esquinas centrais.
Vi muitos destroços, uma
verdadeira praça de guerra: máquinas espatifadas nas ruas, papéis, paus,
grampeadores, vidros de goma arábica, mata-borrões, bolas de gude – e muito,
muito cheiro de gás lacrimogêneo, um cheiro forte mesmo depois de duas horas de
lançadas as bombas. O vento canalizado entre os edifícios não foi suficiente
para dispersá-lo; senti-o nas narinas, nos olhos vermelhos e lacrimejantes.
Andei por toda a região central
e só vi desolação. Sem gente, sem povo. Era uma cidade parada.
Muito linda essa crônica, Ezio. Me trouxe muitas lembranças também. Vou citar uma que me lembrei agora porque você citou o cheiro do gás lacrimogêneo. Eu tinha 13 anos quando assassinaram W. Herzog. Minha mãe trabalhava no 8º andar do edifício da CEF, na Praça da Sé. Sabendo da manifestação ecumênica que ocorreria, corri pra sala de trabalho da minha mãe e assisti a tudo aquilo (8 mil pessoas, foi o que registraram) de camarote. Com 13 anos, eu ainda não havia estreado em passeatas... Mas além da linda e triste manifestação, lembro demais do cheiro de gás lacrimogêneo, da polícia desfazendo a passeata e de Dom Paulo Evaristo Arns acolhendo as pessoas na catedral. Esse centro tem muitas histórias... Está tudo muito estranho nesses dias, muita melancolia. Mas seremos outros em breve. Beijos pra você. Cláudia Mogadouro
ResponderExcluirObrigado, Cláudia, pelo prestígio. Herzog foi assassinado em 25 de outubro de 1975; me reporto a esse ato covarde na minha crônica "Marias e Clarices". Sim, bem me lembro da Dona Elsa, bondosa pessoa, que cuidava, salvo lapso de memória, do Patrimônio. Grande abraço para você, querida amiga.
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ResponderExcluirSenti um tom autobiográfico...
ResponderExcluirSenti e sei.
Sei e gostei.
Sim, minhas lembranças pela linda capital paulista. Obrigado por prestigiar o blog. Volte sempre. Abraços.
ExcluirEzio, sempre fugi de confusão. A tímida caipira do interior de Minas ficou muito assustada com São Paulo rss. Tudo ali era grande, a cidade, a movimentação de pessoas, as manifestações... Um outro mundo, para mim. Mas me lembro que quando o conheci usava os cabelos bem compridos. Uma bela crônica, como sempre. Abraço.
ResponderExcluirPois é, Marilene, eu gostava de procurar movimentação. Não segurava a curiosidade e nem os ímpetos intervencionistas. Ia entrando e participando... Coisas da mocidade. Abração para você.
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