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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Crônica - São Paulo vazia

Acalentei um sonho: queria ser hippie e me mudar para São Paulo, morar nas ruas e vender artesanatos na Praça da República. Dali eu sairia pelo mundo, caminhando para onde desse e com quem fosse. Queria ser um pé na estrada, um sem destino; não queria nem lenço e nem documento.

Adolescente, meu desejo foi toldado pela minha mãe, que me fez esperar um emprego estável. Então, já mais moço, o serviço público me propiciou uma boa parcela das minhas vontades, na Capital paulista: botei cabelo e barba grandes, bolsa de couro a tiracolo, camisa suja e calça de brim rasgada; nos pés, tamancos de madeira; na boca, cachimbo com fumo irlandês, perfumado, fragrante.  A efervescência da cidade, a multidão que em massa compacta se deslocava me enchia os olhos; andei muito pelo centro velho, perambulei por teatros, restaurantes baratos, bares suspeitos. Esquinas nas altas madrugadas? Teatros malditos? Cantos menos recomendáveis? Sim, frequentei todos.
São Paulo sempre me fascinou. Ainda me fascina: multidões que dão anonimato, diversidade culturais, um frenesi constante e multicolorido. No entanto, alguns vazios me ficaram na memória: nas Copas do Mundo de 1978 e 1982, as ruas e avenidas ficaram sem viva alma, sem ninguém. Perambulei pela cidade velha e pude sentir a imensa solidão de perto: na Avenida Ipiranga e na São João, no Paissandu e na Sé, apenas um ou outro passante, apressado.  Tudo ficava estranho, sombrio e assustador. Uma cidade morta, fantasmagórica, inerte.
Cidade vazia assim só vi em outra ocasião, em 1979, quando a grande passeata dos bancários foi o estopim para uma quebradeira geral. Quanto mais a Polícia Militar reprimia, com bombas de gás lacrimogêneo e cassetetes, mais os populares aderiam: office-boys, vendedores ambulantes, comerciários, escriturários, jogaram de um tudo nos policiais: máquinas de datilografia, cinzeiros de vidro, paus, pesos de papel, canos de armação de barracas e o que mais estivesse à mão, foram atirados ruas afora.
Trabalhava na Avenida Paulista. Fiquei sabendo do negócio e saí correndo, por volta das cinco da tarde. Desci do ônibus no Anhangabaú, subi para a Praça do Patriarca e não vi mais do que um lúgubre vazio, um oco, um silêncio absoluto. Um ou outro cavalariano e ninguém mais. Nem mesmo a violenta Polícia do Exército, que era uma constante, marca registrada nas esquinas centrais.
Vi muitos destroços, uma verdadeira praça de guerra: máquinas espatifadas nas ruas, papéis, paus, grampeadores, vidros de goma arábica, mata-borrões, bolas de gude – e muito, muito cheiro de gás lacrimogêneo, um cheiro forte mesmo depois de duas horas de lançadas as bombas. O vento canalizado entre os edifícios não foi suficiente para dispersá-lo; senti-o nas narinas, nos olhos vermelhos e lacrimejantes.
Andei por toda a região central e só vi desolação. Sem gente, sem povo. Era uma cidade parada.

7 comentários:

  1. Muito linda essa crônica, Ezio. Me trouxe muitas lembranças também. Vou citar uma que me lembrei agora porque você citou o cheiro do gás lacrimogêneo. Eu tinha 13 anos quando assassinaram W. Herzog. Minha mãe trabalhava no 8º andar do edifício da CEF, na Praça da Sé. Sabendo da manifestação ecumênica que ocorreria, corri pra sala de trabalho da minha mãe e assisti a tudo aquilo (8 mil pessoas, foi o que registraram) de camarote. Com 13 anos, eu ainda não havia estreado em passeatas... Mas além da linda e triste manifestação, lembro demais do cheiro de gás lacrimogêneo, da polícia desfazendo a passeata e de Dom Paulo Evaristo Arns acolhendo as pessoas na catedral. Esse centro tem muitas histórias... Está tudo muito estranho nesses dias, muita melancolia. Mas seremos outros em breve. Beijos pra você. Cláudia Mogadouro

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    1. Obrigado, Cláudia, pelo prestígio. Herzog foi assassinado em 25 de outubro de 1975; me reporto a esse ato covarde na minha crônica "Marias e Clarices". Sim, bem me lembro da Dona Elsa, bondosa pessoa, que cuidava, salvo lapso de memória, do Patrimônio. Grande abraço para você, querida amiga.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Senti um tom autobiográfico...
    Senti e sei.
    Sei e gostei.

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    1. Sim, minhas lembranças pela linda capital paulista. Obrigado por prestigiar o blog. Volte sempre. Abraços.

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  4. Ezio, sempre fugi de confusão. A tímida caipira do interior de Minas ficou muito assustada com São Paulo rss. Tudo ali era grande, a cidade, a movimentação de pessoas, as manifestações... Um outro mundo, para mim. Mas me lembro que quando o conheci usava os cabelos bem compridos. Uma bela crônica, como sempre. Abraço.

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    1. Pois é, Marilene, eu gostava de procurar movimentação. Não segurava a curiosidade e nem os ímpetos intervencionistas. Ia entrando e participando... Coisas da mocidade. Abração para você.

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