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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

domingo, 29 de março de 2020

Crônica - Pião, piorra

Quando eu era mocinho, gostava dos bailes de carnaval do CSEC, o clube social da minha cidade. Era dos primeiros a chegar ao salão e ficava até alta madrugada, quando tudo então silenciava. Tinha uma energia danada, pulava a noite inteira, cantava, brincava com os amigos – cidade pequena, todos eram amigos.

O que me intrigava era a banda, não parava um segundo sequer; um grupo pequeno de instrumentistas e dois ou três cantores que não paravam – das onze da noite até quatro, quatro e meia da manhã, numa sequência só, sem interrupções. Foi então que percebi a tranquilidade com que dois bateristas se revezavam em meio à música sendo executada: primeiro uma baqueta passada de um para o outro, depois a segunda baqueta, um se levantando e saindo, o outro entrando; um pedal cedido de cada vez e, enfim, o outro já estava sentado e tocando a mesma bateria, sem interrupção da música, sem perda de ritmo e sem queda de qualidade.
O músico que estava cansado, com perda de rendimento, saía, dava lugar para outro. Só mesmo quem estava ali, do lado do palco, é que sabia o que estava acontecendo. E assim sucedia com os demais artistas e instrumentos; a guitarra e o contrabaixo, exemplares únicos na banda de poucos recursos, iam passando de mãos em mãos; entrava e saia cantor do mesmo microfone, sem que a banda parasse um segundo que fosse.
Dava gosto ver essas passagens, calmas e imperceptíveis, permitindo que o baile chegasse ao fim, naturalmente, sem tropeços e com a qualidade exigida pelos foliões. Me fazia lembrar dos tempos de criança, quando rodava pião com os meninos da rua. Fieira longa e bem firme, a gente lançava o pião, que fazia buraco na terra e rodava lindo e veloz que só vendo. E o desafio era tirá-lo da terra, por entre os dedos, e passa-lo para a palma da mão, com ele rodando; e, depois, passar o bicho quase indomável para as mãos do amigo do lado. E assim por diante, até o brinquedo cumprir seu objetivo final e morrer nas mãos de alguém. Tudo natural, de mão em mão, sucessivamente.
Um dia eu vi na televisão: dois pilotos num caça da Força Aérea; o que estava no banco da frente, pilotando, sofreu alguma indisposição e o copiloto, no banco de trás, teve que assumir o comando da aeronave. A troca foi feita com precisão, sem perda de velocidade, sem perda de altura e nem de direção, de modo que o caça chegou ao seu destino sem intercorrências. Até me fez lembrar dos músicos carnavalescos da minha terra e das brincadeiras de pião quando criança, tal a naturalidade na troca dos comandos.

4 comentários:

  1. Conheci esses bales de carnaval e, à época, não pensava em como os músicos conseguiam tocar sem descanso. Então era como mencionou??? Essa troca de mãos, objeto de sua crônica, em situações distintas, mostra o quanto ela é importante na vida. O coletivo depende sempre de atos individuais, em dança de passos coordenados, objetivando o bem estar de todos.

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    1. Sincronia perfeita, através de mãos treinadas, concatenadas. Simbiose de corpo e alma segurando ativamente a alegria de viver - nos salões, na cidade, no mundo. Abraços, Marilene, sempre obrigado pela honrosa visita.

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  2. Respostas
    1. Caríssimo José Laércio, confesso que não conheci, ou ao menos penso que não conheci, o Luar de Prata. O Célio levantou arquivos virtualizados dos jornais da época, em que se reportam ao Luar de Prata. Grande abraço.

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