Postagem em destaque

Sobre o Blog

Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Crônica - Tambu e candombe

 

Atravessei a Serra do Cipó, nas imediações de Belo Horizonte, apenas uma vez, rapidamente e sem parar; é uma serra alongada, de formato diferente das que conheço. A vegetação é rasteira e permite que, do alto, se enxergue longe; no trecho em que passei, é pouco ou quase nada habitada. Imagino que, nas noites mais escuras, seja possível descortinar um belo céu estrelado – quem sabe?

Nela está o Quilombo do Açude, comunidade que cultiva os tambus e o candombe. Dona Maria das Mercês, matriarca do grupo, mantém vivas as tradições do lugar; ela preserva a união do seu povo e conta uma história singular, encontrada em reportagens jornalísticas* e em pesquisas acadêmicas**.

Há 200 anos, diz ela, os negros recebiam Nossa Senhora do Rosário, que se achegava encantada pelo som dos tambus – espécie de tambor, escavado no tronco da saboeira, árvore nativa, e coberto de couro. Sabedor da aparição e enciumado porque ele mesmo não conseguia ver a Virgem, o Senhor mandou queimar os tambus, em tosca vingança contra os escravos.

Conta ainda, Dona Mercês, que Nossa Senhora, inconformada, direcionou a fumaça do incêndio para cima do Senhor, que morreu asfixiado e implorando por um perdão jamais concedido. Refeitos os tambus, três deles estão guardados, a sete chaves, pela matriarca; esses mesmos tambus centenários ainda fazem a marcação do candombe, festa religiosa típica e sincrética que realizam anualmente, no mês de setembro.

Dessa bonita história remendei alguma coisa, num quase-soneto hendecassílabo, juntando trechos de conhecidas músicas consagradas à Santa:

 

Lá no Açude, pra Senhora do Rosário,

dum tronco cavaram o tambu sonoro.

Revoltado, o Sinhô (tamanho indecoro!)

no tambu colocou fogo temerário.

 

O raro fumo foi pro Sinhô calvário

que a Virgem lhe mandou pelo desaforo.

Feneceu na fumaça, antes botou choro -

Em vão todos os clamores do ordinário.

 

O tambu compassa o candombe no Açude,

em Mercês o sacrário da tradição:

morada de rosa, cravo e laranjeira.

 

Mande pra Virgem, na sua infinitude,

uns ramos de alecrim e manjericão.

Salve o tambu, salve o tronco da saboeira.

 

 

* https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/05/25/interna_gerais,1150496/quilombo-do-acude-adia-candombe-em-homenagem-a-nossa-senhora.shtml

**wttps://www.researchgate.net/publication/322705675_O_Candombe_do_Acude_Cipo_e_a_resistencia_cultural_quilombola_lutas_contra-hegemonicas_de_um_Sul_multifacetado

3 comentários:

  1. Fiz algumas alterações, pequenas, tentando acertar a métrica...

    ResponderExcluir
  2. Interessante e importante crônica, coroada pelo soneto harmonioso, expressivo e sonoro !
    Parabéns !

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito agradecido, Clarice Villac. Como vê, estou insistindo nisso... Um grande abraço, muita paz e saúde.

      Excluir