Atravessei a Serra do Cipó, nas imediações de Belo Horizonte, apenas uma vez, rapidamente e sem parar; é uma serra alongada, de formato diferente das que conheço. A vegetação é rasteira e permite que, do alto, se enxergue longe; no trecho em que passei, é pouco ou quase nada habitada. Imagino que, nas noites mais escuras, seja possível descortinar um belo céu estrelado – quem sabe?
Nela está o
Quilombo do Açude, comunidade que cultiva os tambus e o candombe. Dona Maria
das Mercês, matriarca do grupo, mantém vivas as tradições do lugar; ela preserva
a união do seu povo e conta uma história singular, encontrada em reportagens
jornalísticas* e em pesquisas acadêmicas**.
Há 200 anos,
diz ela, os negros recebiam Nossa Senhora do Rosário, que se achegava encantada
pelo som dos tambus – espécie de tambor, escavado no tronco da saboeira, árvore
nativa, e coberto de couro. Sabedor da aparição e enciumado porque ele mesmo
não conseguia ver a Virgem, o Senhor mandou queimar os tambus, em tosca
vingança contra os escravos.
Conta ainda,
Dona Mercês, que Nossa Senhora, inconformada, direcionou a fumaça do incêndio para
cima do Senhor, que morreu asfixiado e implorando por um perdão jamais concedido.
Refeitos os tambus, três deles estão guardados, a sete chaves, pela matriarca; esses
mesmos tambus centenários ainda fazem a marcação do candombe, festa religiosa típica e sincrética
que realizam anualmente, no mês de setembro.
Dessa bonita
história remendei alguma coisa, num quase-soneto hendecassílabo, juntando
trechos de conhecidas músicas consagradas à Santa:
Lá no Açude, pra Senhora do Rosário,
dum tronco cavaram o tambu sonoro.
Revoltado, o Sinhô (tamanho indecoro!)
no tambu colocou fogo temerário.
O raro fumo foi pro Sinhô calvário
que a Virgem lhe mandou pelo desaforo.
Feneceu na fumaça, antes botou choro -
Em vão todos os clamores do ordinário.
O tambu compassa o candombe no Açude,
em Mercês o sacrário da tradição:
morada de rosa, cravo e laranjeira.
Mande pra Virgem, na sua infinitude,
uns ramos de alecrim e manjericão.
Salve o tambu, salve o tronco da saboeira.
* https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/05/25/interna_gerais,1150496/quilombo-do-acude-adia-candombe-em-homenagem-a-nossa-senhora.shtml
**wttps://www.researchgate.net/publication/322705675_O_Candombe_do_Acude_Cipo_e_a_resistencia_cultural_quilombola_lutas_contra-hegemonicas_de_um_Sul_multifacetado
Fiz algumas alterações, pequenas, tentando acertar a métrica...
ResponderExcluirInteressante e importante crônica, coroada pelo soneto harmonioso, expressivo e sonoro !
ResponderExcluirParabéns !
Muito agradecido, Clarice Villac. Como vê, estou insistindo nisso... Um grande abraço, muita paz e saúde.
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