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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

domingo, 22 de março de 2020

Conto - Em branco e preto, 4a. parte

Passei muitas dificuldades. Sou descendente de escravos e nunca tive muitas oportunidades na vida. Meu pai, que trabalhava em uma quinta, me colocou num Seminário, onde me fiz Diácono. Hoje, felizmente, levo uma vida tranquila: com minhas túnicas alvas, que contrastam com o meu tom de pele, exerço meu oficio nas igrejas da região.
Gosto particularmente de tocar os sinos, do alto das torres. Ao som dos dobrados, vejo a cidade aos meus pés, com seus casarões antigos adequadamente preservados. Vejo a quinta, em que meu pai tralhava, e me lembro das histórias que dele ouvia quando era criança. Foi ele quem me contou sobre um caso interessante, que se passou com uma certa Apolônia, esposa de um enxadrista.
Meu pai era cocheiro de profissão, cuidava dos carros do patrão e tinha especial esmero com os cavalos; escovava-os até que os pelos brilhassem, fazia lindas tranças nas crinas longas e bem asseadas. Eram animais que chamavam a atenção pelo porte altivo, dois brancos e dois mais escuros. Na rua, eram elogiados pelos transeuntes, faziam o orgulho do condutor.
Na quinta, meu pai desempenhava todo e qualquer trabalho, não ficava só nas cocheiras; era um peão, um volante, centralizando e executando os principais trabalhos que se apresentavam. Empregado dedicado e leal, certo dia percebeu algumas anormalidades no estábulo, coisas fora de lugar e remexidas. Foi então que, apurando os sentidos e fazendo uma série de investigações por conta própria, veio a descobrir que a patroa, Apolônia, recebia, nos fins de semana, na ausência do marido, um certo Reggy, conhecido enxadrista da cidade.
Às escondidas, meu pai viu algumas cenas das quais, por recato, não me dava muitos detalhes; mas me dava a entender que Apolônia e Reggy tinham encontros ardentes e voluptuosos, todos os fins de semana, sábados e domingos, invariavelmente. Os parreirais, no esplendor de fim de ano, com seus cachos a caminho da colheita, testemunharam muitas estripulias e aventuras; cocheira e estábulos devem guardar, até hoje, eu acredito, alguns cheiros e os sons peculiares.
Meu pai levou esse segredo para o túmulo, nunca o revelando a mais ninguém! Por certo os leitores haverão de entender, mas eu não seria capaz de declinar o local desses acontecimentos e nem de revelar o verdadeiro nome das pessoas; o respeito à memória do meu pai e aos meus votos jamais me permitiriam fazê-lo, mesmo em se considerando que todas essas pessoas já não estão mais entre nós.

6 comentários:

  1. Parabéns, Professor, pelo belo texto

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  2. Uma beleza, Ezio! Gosto da forma como detalha os locais, bem leve, apenas para que possamos visualizá-los. Segredos...
    Resguardá-los é respeito. Muito bom!!!!

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    1. Obrigado, Marilene, por prestigiar meu cantinho. Sim, alguns segredos fazem bem, é bom acalentá-los de vez em quando. Um forte abraço para você, querida amiga.

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  3. Ligia Manetta Galiazzo15 de abril de 2020 às 15:20

    Esse conto é simplesmente maravilhoso..
    ����������

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    1. Obrigado, Ligia, que bom que gostou. Venha sempre que puder. Abraços e muita saúde para você.

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