No Morro do Vai e Volta
Morro do Vai e Volta, Estrada do Vai e
Volta, Córrego do Vai e Volta. Ninguém sabe dizer com exatidão sobre a origem
do nome, mas é isso mesmo: o morro em que se encrava a minha casa chama-se
Morro do Vai e Volta, justamente ao fim da estrada que tem esse mesmo nome. Beirando
o córrego do mesmo nome.
De onde o nome? Não sei ao certo. Diziam
que por esses caminhos não se ia a lugar algum, o caminhante obrigatoriamente
tinha que voltar, girando em torno do morro. A explicação faz sentido, a julgar
pela topografia da área.
No começo era um bairro de muita
pobreza, um ajuntamento de casebres de taipa cobertos com sapé, margeando a
estrada de terra, esburacada; hoje muita coisa mudou, mas continua sendo bairro
de população pobre, quando muito de classe média. O lugar cresceu, modificou-se
com o passar do tempo. Morei ali muitos anos. Agora os caminhos já encontraram
saídas diversas, para outros pontos da cidade.
Seguindo a estrada, depois da ruela de
acesso à minha casa, podíamos observar, tempos atrás, extensas charnecas
ladeando o córrego; naqueles alagadiços resistiram, até os anos 1970, algumas
pocilgas em pequenos sítios que então se espalhavam indefinidamente. Por sorte,
eram poucos os dias de intenso calor; mas, nesses raros dias, o cheiro que dali
subia para os lados da minha casa era simplesmente insuportável.
Com pouca vizinhança próxima e cercada
por um pequeno bosque de mata nativa, ali ficava a minha casa, no alto da colina
a que se chegava enfrentando uma ladeira íngreme, de terra batida. Morava afastado
da Estrada do Vai e Volta.
Em meio a diversas nascentes d´água,
minha casa nunca teve estilo definido; serviu-nos de moradia, a mim, a minha
esposa e ao meu filho – e também de escritório. Nada de luxo. A parte de baixo
é de alvenaria, erguida sobre uma base de pedra bruta, piso de tábuas corridas,
duas salas simples e amplas: uma sala de leituras, a lareira, uma mesa de canto
onde deixava montado o meu tabuleiro de xadrez, um conjunto de sofás de cor
marrom; ao lado, separada por um pórtico de pedra, outra sala, de visitas, que
se abria para a rua, com mais um jogo de sofás azuis e mesinha de centro, de
madeira. Eram poucos os quadros na parede, dois retratos dos avós italianos e
seis ou sete reproduções de Van Gogh. Atrás desses dois ambientes, um lavabo, uma
sala de jantar e a uma cozinha completavam o térreo. Na parte de cima, três
quartos amplos e dois banheiros; todos os cômodos superiores eram de madeira, o
que nos ajudava a suportar os rigorosos invernos.
A rua da minha casa demorou para ser
desbravada; era mais uma trilha, por onde transitavam mulas e cavalos que por
ali apascentavam. Era bonito ver as nascentes escorrendo.
Num platô mais elevado que a
residência, atrás da casa, havia um quintal amplo, espaçoso, inteiramente gramado,
onde cultivava um pequeno pomar, dois pés de lima da pérsia, uma mexeriqueira e
um caquizeiro. Afora as pitangueiras, que nasciam sem pedir licença. Dali minha
vista alcançava, lá embaixo, a estrada do Vai e Volta e os pequenos sítios. Via
também o córrego, cortando as charnecas rumo à área central da cidade. Hoje as
construções tomaram conta da parte baixa do bairro, as vistas pouco alcançam;
as ruas estão calçadas, as nascentes estão canalizadas.
Por fim, mais ao fundo do quintal, uma
edícula, uma outra casa, só que menor, em que mantive, por algum tempo, o meu
incipiente escritório de advocacia. É o que de melhor eu pude conseguir para
começo de profissão, embora sabendo que era um lugar praticamente inacessível
em épocas chuvosas; antes do asfaltamento da rua, isso atrapalhava muito a minha
clientela.
Enfim, morava num lugar aprazível e que
me dava conforto. Herança dos meus pais. Os ares bucólicos me agradavam. Por
vezes reclamava das escadas: uma na frente da casa, outra, já dentro, para
acesso ao piso superior, e mais uma ainda, de pedras, atrás da casa, para
acesso ao quintal. Coisas de cidade montanhosa.
..........................
Numa fria manhã de domingo, no começo
do outono de 1970, eu recebi a visita do meu amigo Guilherme Holders. Suas visitas
eram frequentes, e tínhamos ocasião de conversar e trocar ideias acerca das
artes da numismática. O amigo de longa data era profundo conhecedor nesta área
e quase sempre me trazia uma novidade, como que para me incentivar no
colecionismo: naquele dia ele me exibia, todo orgulhoso, uma linda e secular
moeda de cobre, de 200 réis.
A peculiaridade daquela peça é que ela
apresentava o seu reverso inclinado; embora não seja propriamente uma raridade,
não deixa de ser um fenômeno curioso de se apreciar. É um defeito
característico de fabricação e acontece, vez em quando, com alguns lotes de
moedas, assim ia me explicando meu amigo.
Eu, novato no tema, enveredava pela
numismática e era o Guilherme o meu, digamos, conselheiro; estudioso do tema, ele
exibia invejável conhecimento em matéria de moedas; das brasileiras, conhecia
tudo, inclusive sobre aquelas que foram cunhadas em Portugal para circularem no
Brasil. A par disso, exibia uma bela, rica e muito bem organizada coleção, com
peças em excelente estado de conservação, com muitas em Flor de Cunho,
imaculadas e sem uso.
A gélida manhã era comum para a estação;
uma neblina densa cobria a cidade, prenunciando longo e marcante inverno para
breve. A chuva já vinha caindo por um mês seguido, desde março batendo sem
trégua nas montanhas e pradarias – o que também não surpreende ninguém, dado
que nossa cidade se transforma, em determinados anos, numa charmosa Macondo. Depois
vem uma estiagem, que traz consigo um inverno que chega para valer: as
inesquecíveis geadas deixam os telhados com bonitas lâminas brancas, que vão
pingando, pouco a pouco, enquanto o sol vai se erguendo nas manhãs geladas. As
terras altas das Águas Virtuosas propiciam este clima entre nós, principalmente
nos arredores da cidade.
Dentro de casa e pregados à lareira,
encapotados, sorvíamos um saboroso chocolate fumegante, que minha mulher nos preparara.
Com uma pequena lupa, examinávamos aquela maravilhosa peça com cuidado: a
inclinação do seu reverso a tornava singular, diferente de todas as que eu já
tinha visto.
Com paciência e em tom professoral,
meu amigo explicava:
- Basicamente, existem dois padrões de
cunhagem, em relação ao anverso e ao reverso das moedas, quer dizer, à frente e
ao verso.
E, pegando outra moeda qualquer,
comum, foi ilustrando a fala:
- Existe o padrão Eixo Horizontal, em que
o observador, olhando o anverso, ou a frente, de uma moeda em pé, imagina uma
linha horizontal cortando-a pelo centro dela; então, gira a moeda sobre esse
eixo imaginário e, logo ao completar o giro, encontra o reverso, quer dizer, a
parte de trás, também em pé. Compreende, meu caro?
- Sim, claro.
- E também tem outro padrão, o do Eixo
Vertical, em que o observador imagina uma linha vertical na frente da moeda, de
alto a baixo; então, girando a moeda sobre esse eixo, vai encontrar o reverso
igualmente em pé. Não é simples?
- Sim, sim, até aí tudo bem. Mas então,
o que seria o reverso inclinado?
Guilherme, então, retomando a moeda de
200 réis, me explicou:
- Acontece que, por erros na cunhagem
de alguns lotes, ocorrem certas inversões, quer dizer, ao invés de se fazer o
giro pelo eixo previsto pelo fabricante e encontrar o reverso exatamente em pé,
o observador encontrará o reverso inclinado. As inclinações podem ser de
diversos graus em relação ao ângulo esperado; algumas inclinações são mais
suaves, outras são mais acentuadas. Consegue ver nessa daqui?
- Ah! Sim, agora consigo ver
claramente. Nesta moeda o reverso aparece inclinado; aliás, está muito
inclinado, me parece. Que interessante, eu não sabia desses detalhes – respondi,
admirado com a descoberta.
Ao que ele continuou:
- E isso pode acontecer
independentemente do eixo, seja ele horizontal, seja ele vertical. Tanto faz.
Mas, não é só isso: algumas vezes, ao invés de encontrar o reverso em pé, de
acordo com o esperado pelo padrão, você poderá encontrá-lo exatamente de cabeça
para baixo; ou, como se diz em numismática, você encontrará o reverso
invertido. Simples, não lhe parece? E por acidente, por erro, não de propósito.
- Sim – concordei. Simples e interessante,
mas eu nunca vi isso antes, nem reverso inclinado e nem reverso invertido.
- Pois agora está vendo, isso existe,
sim. É só prestar atenção nas moedas que você manuseia no dia a dia e, com um
pouco de sorte, vai encontrar um ou outro defeito. São anomalias que escapam ao
controle de qualidade do fabricante; para os colecionadores, isso é bom, porque
enriquece nossas coleções.
Diante da satisfação que eu
demonstrava, meu amigo continuou a discorrer sobre outros defeitos.
- Ah! Tem mais: há casos em que
podemos encontrar o reverso horizontal. Nesse caso, o reverso, ao invés de inclinado
ou invertido, estará completamente na horizontal. Quer dizer, enquanto a frente
da moeda se apresenta em pé, na vertical, o seu lado de trás estará na linha
horizontal, também por erro de cunhagem. Compreende?
- Bom – continuou Guilherme Holders,
temos as moedas com boné. É, tem isso, sim. Nunca viu uma, meu caro?
- Boné? Como assim? Eu não sei o que é
isso. Me explica esse negócio.
Íamos nessa conversa, já mais
aquecidos pela lareira e pelo chocolate cremoso, quando a aldrava, batida com
força três vezes de encontro à porta da frente, alertou-nos para a presença de
dois garotos, Bruninho e Leandro, que traziam um envelope endereçado ao Guilherme.
Em dias chuvosos os telefones praticamente não funcionavam; era difícil
completar a ligação e, mais difícil ainda, era manter a linha, que caía a todo momento.
E se não caía, então era um chiado alto e infindável que impedia as
comunicações. É por isso que alguns garotos se especializaram na arte dos
recados, cruzando a cidade de um lado a outro com os famosos bilhetes e
envelopes. Por vezes e conforme a pressa, levavam recados verbais mesmo; esse
era um meio de comunicação rápido e eficiente, além de ser mais confiável,
muito usado pela população.
Bruninho, baixote e falante, era um
pequeno tribuno e gostava de fazer um discurso por ocasião das entregas; tinha
o dom da palavra e, se lhe permitissem, suas falas iam longe; usava
tradicionalmente boné marrom e calças de flanela, também marrons, que vinham
até os joelhos, seguras por suspensórios, o que lhe conferia estudada elegância.
Já Leandro, este era mais alto e mais quieto; falava menos e era arguto
observador; usava calças compridas e raramente vestia blusas, como se não
sentisse frio. Os dois ganhavam seus trocados com o leva e traz da área
policial; entrosavam-se perfeitamente com os investigadores e eram discretos,
qualidade essencial para o negócio.
Mas também havia outro motivo para se preferir
os bilhetes aos telefonemas: o meu amigo Guilherme, por exemplo, tinha
desconfiança das telefonistas. Achava que elas ouviam demais, aproveitando-se
daquele sistema de cabos e plugs que iam conectando nos alvéolos próprios para
completar as ligações. As más línguas diziam que eram as que mais sabiam das
particularidades das pessoas.
- É nessas conexões que elas ficam ouvindo
a gente – afirmava ele. Por isso é que eu só manivelo para falar coisas banais; por telefone, meu caro, certas
coisas não devem ser ditas, nunca.
Sem matar a minha curiosidade sobre as
moedas com bonés, meu amigo retirou de dentro do envelope um bilhete, dobrado
às pressas em quatro partes, em que se lia:
Três
punhaladas acabam de matar o Coronel Dr. Assis; o corpo ainda está quente.
Venha logo ao Casarão.
Abaixo do pequeno texto, escrito em
pretenso tom dramático, havia uma assinatura que reconhecemos como sendo a do
Chefe de Polícia, delegado Alberto Dias, jovem no ofício e recém-chegado por
estas bandas; rapagão forte, de estatura mediana, chegou com fama de durão –
fama a que fazia jus, diga-se de passagem, mas certamente daquela dureza muitos
usam como biombo para esconder fragilidades e inexperiências. Era de poucas palavras
e cultivava apenas amizades raras; solteiro, não dava mostras de querer
casamento tão cedo, talvez imaginando uma carreira mais sólida na Capital do
Estado, onde deixou pais e irmãos.
Guilherme Holders estava de plantão
naquele domingo; ou ao menos deveria estar, a postos, na própria Delegacia,
para atender a estas emergências. Todavia, profissional responsável que era,
deixara o Dr. Alberto ciente do seu paradeiro.
Lembro-me de ter olhado, meio que
automaticamente, o meu relógio de pulso, um Wilson de mostrador branco ao qual
renovei a corda: passava um pouco das onze e meia daquela manhã cinzenta e lá
se ia nosso domingo.
Avisei minha mulher, que não me
esperasse para o almoço, e descemos bem rápidos para o centro da cidade; os
dois garotinhos ficaram para se enxugar e tomar um café; era bom que se
aquecessem um pouco para evitar uma pneumonia.
Fomos a pé, para ganhar tempo: até encontrar
um carro de aluguel, uma charrete, enfim, certamente já estaríamos na casa do
morto.
Ademais, o barreiro espesso que cobria
a estrada, pelas chuvas ininterruptas dos últimos dias, por certo seria empecilho
para o trânsito de outro veículo que não as carroças e charretes; estas eram tradicionalmente
usadas no transporte dos visitantes em direção aos pontos turísticos da cidade,
mas a população local também delas se servia, até com certa frequência, para
vencer distâncias mais longas.
- Em dias assim, por aqui ninguém vai
de carro; e quem vai não volta – comentei, em tom de troça.
Em rápida caminhada de vinte ou trinta
minutos, mais ou menos, chegamos ao nosso destino.
Muito boa! Sempre me remete, lembranças passadas, fatos semelhantes e lugares parecídos!E o lamaçal,ahh meu Deus, quantos barros já amassei nas ruas barrentas fa minha saudosa Usina Monte Alegre MG
ResponderExcluirEveraldo, meu amigo. Tudo bem? Saudades! Sim, eu também: minha rua não tinha asfalto, meu bairro não tinha asfalto. Imagina,na época de chuva, terra vermelha... É, companheiro, não era fácil, não. Abraços.
Excluir