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quinta-feira, 9 de julho de 2020

Livro - Reverso inclinado. Capítulo 4. A austeridade de um Coronel de boa vida

A austeridade de um Coronel de boa vida

O Coronel Assis, posto que pessoa de hábitos reservados no seu dia a dia, não deixava passar oportunidades para gozar os sabores da vida mundana, tomando algumas cautelas para não ser pego em seus deslizes. Procurava ao menos manter as aparências perante a sociedade; seus filhos, de outro lado, sabiam de seus passos incertos, embora nada comentassem sobre isso. Foi por essa razão estratégica que o Coronel escolheu o casarão para fixar residência. O mesmo casarão, hoje quase desmoronando, que foi do Conde Prates, com seus aproximados trinta cômodos mal contados, alguns sem luz externa, distribuídos em dois andares de construção sólida pintada de amarelo.

Até hoje parece que ninguém se contenta com o tamanho original do casarão, havendo sempre um ou outro que vem para acrescentar alguma coisa em direção aos fundos do terreno. Localizado bem na praça principal da cidade, estava rodeado, naqueles tempos, de casas de jogos e de cassinos – e de tudo o mais que de clandestino orbitava em torno destes ambientes nada familiares.
Casou-se no auge das riquezas do café e pouco antes do crash da Bolsa de Nova Iorque. A escolha do casarão se deu com a contrariedade da esposa. Para ela foi um grande desgosto; era moça de abastada família da região que, embora sabendo das andanças noturnas do consorte, de nada reclamava. Esposa dedicada à criação dos filhos e sem vida social, amargava solitária os infortúnios de um casamento arranjado por interesses paternos.
Muitas moças de prostíbulos, em sua maioria vindas das capitais mais próximas para fazer a vida nas Águas Virtuosas, ganharam boas quantias do Dr. Assis e de outros tantos homens endinheirados. Houve mesmo quem se diplomasse em curso superior; vendo, depois, algumas doutoras que voltaram para suas origens, é difícil imaginar as peripécias a que foram obrigadas para se formar.
Enviuvou cedo o Coronel, três ou quatro anos depois do nascimento do segundo filho; criou os dois meninos sem novo casamento, adotando com eles uma austeridade de princípios que ele mesmo não observava para si próprio. Era rígido no trato da prole e não admitia escorregões ou desvios de conduta. 
Libertado do matrimônio, viu no casarão o meio apropriado para os seus intuitos de libertinagens. Dali era fácil, altas horas da noite e a salvo dos olhares bisbilhoteiros, percorrer pequenas distâncias até os locais duvidosos de que gostava. Quando então a densa neblina descia sobre a cidade, ainda mais tranquilas e anônimas eram suas caminhadas notívagas; até mesmo o regresso para casa poderia ocorrer um pouco mais tarde, com o sol nascente escondido atrás da cortina branca.
Diziam que, não raro, a neblina também protegia dos olhares alheios as mulheres que acorriam ao casarão, sobremodo naquelas situações em que tanto as visitantes quanto o Coronel não podiam correr qualquer risco, mínimo que fosse, de serem descobertos em seus íntimos afazeres.
À boca pequena, dizem que muitas vedetes cariocas pernoitaram no casarão; preferiam a discrição daqueles meandros ao entra e saí dos hotéis, que em altas temporadas fervilhavam de gente do mundo artístico: jornalistas, músicos, bailarinos e técnicos, por vezes companhias teatrais inteiras, hospedavam-se nos hotéis centrais, dificultando as manobras daqueles que procuravam anonimato.
Era mesmo o local ideal para o Dr. Assis, que, então, deixou de vez as fazendas aos cuidados de capatazes não bem preparados para a dura missão de administrá-las.
Aos sessenta e dois anos de idade, aquele fazendeiro de longa estirpe ainda dominava boa parte da política local, influenciando as eleições e indicando prefeitos, sobretudo nos tempos de ditadura militar, em os prefeitos das estâncias hidrominerais eram nomeados. Apesar de não ter estudado além do antigo Curso Primário, era chamado de Dr. Assis. Herdeiro de tradicional família cafeeira, que veio perdendo fortunas de geração em geração, até a quebra de 1929, o Dr. Assis jamais conseguiu, apesar de muito esforço, recuperar o prestígio e poderio da época dos seus antepassados; foram justamente as influências perante os grandes da República que retardaram a ruína definitiva.
Nunca quis ser prefeito; antes, preferia indicar os seus apadrinhados e asseclas para o cargo principal da cidade; indicava também os vereadores, de modo que manteve controle absoluto sobre os destinos do município por muitos anos seguidos, no que continuava, aliás, os passos do pai.
Se alguém tinha necessidade de falar com o governador, por exemplo, podia falar diretamente com ele, que isso pouca ou nenhuma diferença fazia para a solução final do problema levantado.
Governadores, deputados e até mesmo senadores da República lhe devotavam respeito e atenção – e, obviamente, contavam com os votos amealhados na região e que lhes garantiam mandatos em sequência.
Uma morte dessas, ainda mais violenta, não poderia ficar sem a adequada solução; menos ainda se admitiria qualquer anormalidade ou maiores delongas na apuração dos fatos.

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