A austeridade de um Coronel de boa vida
O Coronel Assis, posto que pessoa de
hábitos reservados no seu dia a dia, não deixava passar oportunidades para
gozar os sabores da vida mundana, tomando algumas cautelas para não ser pego em
seus deslizes. Procurava ao menos manter as aparências perante a sociedade; seus
filhos, de outro lado, sabiam de seus passos incertos, embora nada comentassem
sobre isso. Foi por essa razão estratégica que o Coronel escolheu o casarão
para fixar residência. O mesmo casarão, hoje quase desmoronando, que foi do
Conde Prates, com seus aproximados trinta cômodos mal contados, alguns sem luz
externa, distribuídos em dois andares de construção sólida pintada de amarelo.
Até hoje parece que ninguém se
contenta com o tamanho original do casarão, havendo sempre um ou outro que vem
para acrescentar alguma coisa em direção aos fundos do terreno. Localizado bem
na praça principal da cidade, estava rodeado, naqueles tempos, de casas de
jogos e de cassinos – e de tudo o mais que de clandestino orbitava em torno destes
ambientes nada familiares.
Casou-se no auge das riquezas do café
e pouco antes do crash da Bolsa de
Nova Iorque. A escolha do casarão se deu com a contrariedade da esposa. Para
ela foi um grande desgosto; era moça de abastada família da região que, embora
sabendo das andanças noturnas do consorte, de nada reclamava. Esposa dedicada à
criação dos filhos e sem vida social, amargava solitária os infortúnios de um
casamento arranjado por interesses paternos.
Muitas moças de prostíbulos, em sua
maioria vindas das capitais mais próximas para fazer a vida nas Águas Virtuosas,
ganharam boas quantias do Dr. Assis e de outros tantos homens endinheirados.
Houve mesmo quem se diplomasse em curso superior; vendo, depois, algumas
doutoras que voltaram para suas origens, é difícil imaginar as peripécias a que
foram obrigadas para se formar.
Enviuvou cedo o Coronel, três ou
quatro anos depois do nascimento do segundo filho; criou os dois meninos sem
novo casamento, adotando com eles uma austeridade de princípios que ele mesmo
não observava para si próprio. Era rígido no trato da prole e não admitia
escorregões ou desvios de conduta.
Libertado do matrimônio, viu no casarão
o meio apropriado para os seus intuitos de libertinagens. Dali era fácil, altas
horas da noite e a salvo dos olhares bisbilhoteiros, percorrer pequenas
distâncias até os locais duvidosos de que gostava. Quando então a densa neblina
descia sobre a cidade, ainda mais tranquilas e anônimas eram suas caminhadas
notívagas; até mesmo o regresso para casa poderia ocorrer um pouco mais tarde,
com o sol nascente escondido atrás da cortina branca.
Diziam que, não raro, a neblina também
protegia dos olhares alheios as mulheres que acorriam ao casarão, sobremodo
naquelas situações em que tanto as visitantes quanto o Coronel não podiam
correr qualquer risco, mínimo que fosse, de serem descobertos em seus íntimos
afazeres.
À boca pequena, dizem que muitas
vedetes cariocas pernoitaram no casarão; preferiam a discrição daqueles
meandros ao entra e saí dos hotéis, que em altas temporadas fervilhavam de
gente do mundo artístico: jornalistas, músicos, bailarinos e técnicos, por
vezes companhias teatrais inteiras, hospedavam-se nos hotéis centrais, dificultando
as manobras daqueles que procuravam anonimato.
Era mesmo o local ideal para o Dr.
Assis, que, então, deixou de vez as fazendas aos cuidados de capatazes não bem
preparados para a dura missão de administrá-las.
Aos sessenta e dois anos de idade, aquele
fazendeiro de longa estirpe ainda dominava boa parte da política local,
influenciando as eleições e indicando prefeitos, sobretudo nos tempos de
ditadura militar, em os prefeitos das estâncias hidrominerais eram nomeados. Apesar
de não ter estudado além do antigo Curso Primário, era chamado de Dr. Assis.
Herdeiro de tradicional família cafeeira, que veio perdendo fortunas de geração
em geração, até a quebra de 1929, o Dr. Assis jamais conseguiu, apesar de muito
esforço, recuperar o prestígio e poderio da época dos seus antepassados; foram
justamente as influências perante os grandes da República que retardaram a
ruína definitiva.
Nunca quis ser prefeito; antes,
preferia indicar os seus apadrinhados e asseclas para o cargo principal da
cidade; indicava também os vereadores, de modo que manteve controle absoluto
sobre os destinos do município por muitos anos seguidos, no que continuava,
aliás, os passos do pai.
Se alguém tinha necessidade de falar
com o governador, por exemplo, podia falar diretamente com ele, que isso pouca
ou nenhuma diferença fazia para a solução final do problema levantado.
Governadores, deputados e até mesmo
senadores da República lhe devotavam respeito e atenção – e, obviamente, contavam
com os votos amealhados na região e que lhes garantiam mandatos em sequência.
Uma morte dessas, ainda mais violenta,
não poderia ficar sem a adequada solução; menos ainda se admitiria qualquer anormalidade
ou maiores delongas na apuração dos fatos.
O poder torto, ainda exercido e cobiçado por muitos. E lá vou eu rss.
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