A repentina prisão do caseiro
No domingo seguinte ao do assassinato,
passada a missa de sétimo dia rezada em intenção da alma do Coronel, o seu
filho estava fazendo uma faxina no quarto do pai quando se deparou uma camisa
xadrez, verde e amarela, totalmente manchada de sangue.
A inesperada aparição desta peça, que
poderia mudar os rumos da investigação, levou a um desfecho mais inesperado
ainda: a abrupta prisão do caseiro.
Almoçávamos em minha casa quando minha
mulher, ouvindo batidas na porta da frente, recebeu um dos meninos de recado, o
Bruninho. Tal como de costume, o pequeno mensageiro ia
disparando um discurso dirigido ao Guilherme:
- Tenho a subida honra, meu dileto mestre
Guilherme, arguto investigador, único nestas inebriantes paragens que, com seus
olhos atentos e faro de perdigueiro, a tudo elucida com perspicácia...
- Vamos, menino, desembucha logo! O
que tem aí?
Desta vez não tinha papel algum, mas trazia
uma mensagem verbal do delegado, que pedia a imediata presença do investigador
no casarão. Guilherme, tão logo entendeu a gravidade do chamado, impediu outra
tentativa de discurso que o pequeno visitante ensaiava:
- Pronto, já entendi, menino. Chega de
falar e vamos embora!
E, virando-se para mim:
- Esse aí, se não der um basta nele,
vai falar até amanhã cedo.
Descemos o morro. Tomamos uma charrete
na Estrada do Vai e Volta; de carona, Bruninho foi junto, acocorado, num canto.
Quebrei o silêncio:
- O que terá acontecido? Deve ter
alguma novidade, coisa importante.
Guilherme permaneceu quieto; então,
Bruninho interveio:
- Deve ter ocorrido algo de sonora
importância, amados senhores, já podemos antever isso, sem dúvida....
Mas ninguém respondeu nada. O menino
apeou nas proximidades da praça, pouco antes do casarão. O filho do Coronel nos
recebeu, com visível ansiedade. Encaminhou-nos para o quarto do morto, onde se encontrava
o próprio delegado, que foi logo explicando, em tom de desculpas e com o olhar
na camisa que tinha em mãos.
- Estava jogada bem no fundo do guarda-roupa
– afirmou, sem conseguir encarar o investigador. Como você não estava na
Delegacia, já sabia onde encontrá-lo, certo?
E acrescentou, em tom de autoridade:
- Pois é, nossos homens não olharam
direito; eles que me esperem para ver!.
Guilherme fez pouco da bravata; e perguntou,
sem se dirigir a alguém em especial:
- Enrolada, num bolo só, ou esticada?
- Enrolada, tenho certeza. Estava entre algumas roupas do meu pai – falou Assis Júnior, ainda abalado com o
impacto daquela surpresa.
A peça apresentava manchas de sangue
que, concluímos, se tratava de sangue do morto. Era bem provável, porquanto, no
dia da morte, não foi encontrado qualquer sinal de sangue em outras dependências
da casa, a não ser no quarto, sob o corpo da vítima. Isso nos levava a pensar
que o assassino tinha trabalhado com rapidez e habilidade o suficiente para não
derramar uma gota sequer do próprio sangue.
O pano,
endurecido pela pasta escura e ressecada, amarfanhado, dava sinais de ter sido
esfregado sobre o corpo da vítima ou sobre o chão ensanguentado, de propósito.
Guilherme tomou da camisa que o delegado
lhe passara e examinou-a detidamente: ergueu-a ao encontro da luz que filtrava
pelas duas venezianas abertas, olhou-a pela frente e por trás, repetindo o
gesto várias vezes. Não fez qualquer comentário, mas o seu semblante
demonstrava a notória satisfação de quem descobre algo importante.
- Essa camisa vai nos revelar muita
coisa para a conclusão do inquérito. Tenho certeza.
E acrescentou, olhando para filho do
morto, que agora permanecia calado:
- E de quem é?
A resposta, enfim, foi esta:
- Não sei, não é minha e nem do pai.
- E onde estão os empregados?
- A cozinheira está lavando louça. Os outros dois empregados estão na fazenda, cuidando um pouco das
coisas por lá.
- Quem mais sabe desta camisa?
- Só eu. Não contei nada para ninguém,
apenas avisei o Dr. Alberto.
O constrangimento do Dr. Alberto continuava
vivo no seu rosto. Parecia mais preocupado por não ter encontrado a camisa do que
com a camisa em si mesma.
Devolvendo a camisa para o delegado, Guilherme
pediu-lhe um favor, como quem se dirige a um subalterno:
- Essa camisa é do capataz! Que cuidem
bem disso. Lá em Belo Horizonte, a camisa do Delgado[1] sumiu
misteriosamente; pior ainda, desapareceu de dentro da própria Delegacia. Vocês
se lembram daquele caso, não é? Todo cuidado é pouco.
O Dr. Alberto Dias guardou-a num saco
plástico e não fez qualquer comentário sobre as constrangedoras admoestações
que acabara de ouvir do subordinado.
Dirigindo-se para Assis Júnior,
Guilherme foi incisivo:
- Você me disse que o capataz é quem
viaja para resolver as coisas, não é?
- Sim, é isso mesmo, doutor –
respondeu o filho do Coronel.
- E que coisas são essas?
- Uns poucos negócios: algum dinheiro
de vendas de café para receber, pagamento de contas em bancos, retirada de
estratos bancários, enfim, miudagem que ainda sobra.
De chofre, Guilherme fez uma pergunta inesperada:
- E porque o capataz viaja de trem sem
usar guarda-pó? É vaidoso, ele? Ou será que ele não gosta desse tipo de
proteção?
- Não sei... Guarda-pó, doutor? Não,
nunca o vi com esse tipo de vestimenta.
- Então você confirma: ele tomava o
trem sem guarda-pó?
- Sim, nunca usou isso – respondeu de
pronto. E porque ele deveria usar um guarda-pó? Desculpe-me, mas não entendo essa
fala – questionou o filho.
Eu também não entendia o raciocínio do
Guilherme; afinal, como é que um guarda-pó, que ninguém viu ou mencionou,
poderia se encaixar na história? Meu amigo foi reticente:
- Ah! Deixa isso para lá. São só
conjecturas. Perguntei por perguntar – despistou o nosso investigador. Vocês,
com certeza, não estão muito acostumados aos trens. Estou certo?
Não respondemos nada, apenas nos
entreolhamos e isso foi o bastante para mostrar nossa ignorância sobre o tema.
- Quando é necessário, vou de carro –
acrescentou o moço.
- Bom, a camisa é mesmo do capataz –
disse Guilherme, encerrando a conversa de um modo enigmático.
Ninguém ousou fazer qualquer pergunta,
mas a curiosidade ficou grudada em todos nós. Dali mesmo liguei para a minha
mulher e disse que não me aguardasse tão cedo
Saímos para o frio da rua; em silêncio
absoluto, fomos para o café da praça central; fomos com a companhia do Dr.
Alberto Dias, que aceitou o convite feito por Guilherme.
O local estava praticamente vazio;
poucos fregueses se dispunham a enfrentar o vento gelado do início da tarde de
domingo; alguns turistas, poucos para a estação, que ainda aproveitavam o
restinho do final de semana.
Guilherme permaneceu taciturno por um
bom tempo, de um jeito que eu já vira muitas vezes antes; quando as coisas não se
encaixavam direito nas investigações, ele costumava ter esse comportamento;
para os desconhecidos, parecia coisa de pessoa birrenta.
A súbita localização daquela simples
peça de roupa era um novo, e talvez não desejado, ingrediente naquele
emaranhado de informações; mais atrapalhava do que esclarecia, ao menos sob a
minha ótica.
Ademais, uma dúvida ainda maior e mais
intrigante ocupava o meu pensamento: como é que Guilherme soube que a camisa
era do Capataz? Acaso não poderia ser de qualquer outra pessoa? Por que seria
do administrador – e, ainda por cima, de uma pessoa que desapareceu sem deixar
notícias do seu paradeiro? E a história do guarda-pó? Que relação teria com o
caso?
Em respeito ao silêncio compenetrado
do investigador, achei mais prudente não precipitar a discussão; mais cedo ou
mais tarde Guilherme exporia seu ponto de vista. Portanto, fiquei igualmente em
silêncio, tal como o delegado.
Aproveitei aquela oportunidade e também
me pus a algumas conjecturas, sobremodo porque o fato novo poderia mudar
radicalmente os rumos da investigação. Fiquei a pensar, por exemplo, se o capataz
poderia ser o assassino que procurávamos, e não o caseiro; mas também podia ser
que a camisa teria sido “plantada” no local, como se diz na gíria policial.
Mas, nesta hipótese, quem a teria colocado no guarda-roupa, misturada às demais
peças do vestuário do morto?
Como não encontrava respostas para
essas questões, o melhor mesmo era esperar a fala do Guilherme; nestas
situações, pelas experiências anteriores, eu tinha certeza de que não demoraria
muito para começar a falar. Era um típico procedimento: criava um ar de
suspense e depois expunha, pausadamente, suas conclusões.
Coube ao delegado, impaciente, romper
o silêncio; aproveitou o momento em que as xícaras fumegantes eram servidas
pela copeira do lugar e então perguntou, hesitante:
- Pode me dizer, Guilherme, como sabe
que aquela camisa é do capataz?
Guilherme respirou profundamente.
Sorveu o seu café, que acabara de adoçar com açúcar mascavo e começou uma
resposta, com certos rodeios:
- Simples. A camisa é do capataz, não
há dúvida alguma sobre isso. Porém, por paradoxal que possa parecer, esta
simples constatação apenas complica a história toda, atrapalha as minhas
conclusões.
Ante nosso silêncio, continuou:
- Pois, bem. Eu examinei aquela peça
de roupa com extremo cuidado, lá no quarto do Coronel, conforme vocês puderam
perceber, não é?
Impaciente, falei:
- Sim, Guilherme, você a esticou na
sua frente, favorecido pela claridade que vinha da rua. Só faltava uma lupa
para completar a cena. Mas você não fez qualquer comentário, o que me fez
presumir que nada tinha encontrado de importante nela.
Ele riu da minha observação e
continuou, um pouco mais descontraído:
- Muito ao contrário, meu caro. No
exame que fiz, pude notar que aquela camisa está cravejada de pequenas manchas
pretas, quase imperceptíveis. Mas isso só ocorre na parte da frente, da altura
dos ombros até a cintura; na parte que fica dentro da calça e nas costas dela, nada
de mancha. E o que é isso? São manchas produzidas por fagulhas, compreende?
O delegado se limitava a ouvir, sem
interferir no nosso diálogo.
- Não, Guilherme, eu não compreendo.
Sinto muito.
- É elementar: as manchas são produzidas
por fagulhas expelidas pela chaminé da maria-fumaça; quando se desce a serra em
velocidade, com a máquina morro abaixo, o vento que sopra nas curvas joga essas
fagulhas para trás; elas invadem os vagões, principalmente aqueles que vêm logo
atrás da locomotiva, manchando, ou até queimando, a roupa dos passageiros. Daí
que muitas pessoas usam um guarda-pó, para proteção das peças de melhor
qualidade. Ao menos esse é o costume aqui da região.
Achei interessante aquela história,
nunca tinha ouvido nada igual. Então o delegado, pela primeira vez, aparteou o
meu amigo.
- Quer dizer, muitos passageiros usam
guarda-pó para proteger a camisa das fagulhas do trem... menos o nosso
administrador, o capataz...
- Exatamente, doutor delegado. É isso
mesmo.
Sim, o raciocínio começava a fazer
sentido. Por isso eu lhe disse:
- Compreendo o que você quer dizer: se
o capataz é o encarregado das viagens para São Paulo, se ele usa o trem no seu
deslocamento e se ele não usa guarda-pó, então a camisa manchada pelas fagulhas
só pode ser dele, e de mais ninguém, não é?
- Exatamente, meu caro - me respondeu, não sem um quê de sarcasmo pela lentidão das minhas ideias.
Pois bem. A nova interrogação que se
nos apresentava era descobrir porque a camisa do capataz estava naquele local.
Sim, deveria haver uma explicação lógica para aquilo.
- Pois é, temos que descobrir isso.
Você, por acaso já tem alguma resposta para isso, Guilherme?
A essa minha pergunta, o delegado, de
imediato e sem pensar muito, lançou uma acusação:
- Só pode ser o capataz a pessoa que
procuramos. Matou o Coronel, roubou as esmeraldas e se desfez das vestes sujas
de sangue ali mesmo no quarto. Vamos mandar expedir ordem de prisão, imediatamente.
Guilherme, rápido na fala, tratou logo
de segurar os ímpetos do chefe:
- Temos que pensar mais um pouco,
Doutor Alberto; temos que ter muita cautela, evitar conclusões precipitadas, que
não teremos como sustentar. O aparecimento da camisa do capataz é só mais um
dado; tanto pode nos ajudar como pode nos atrapalhar, se não tivermos cuidado
com essa informação.
Antes que o delegado pudesse dizer
alguma coisa, eu disse:
- Correto, Guilherme, a calma só pode
nos ajudar. Mas também acho que essa descoberta muda muita coisa nas
investigações. Agora me parece que as suspeitas se deslocam para a pessoa do
administrador da fazenda. O Dr. Alberto que tem razão nisso...
- Talvez não, meu caro. Repito que não
podemos precipitar as coisas. Vamos com muita calma – insistiu Guilherme.
E prosseguiu:
- Em princípio, o suspeito continua
sendo o caseiro. Raciocinem comigo: ele entra no quarto sem que ninguém o veja,
ataca e mata o Coronel, depois pega alguma peça de roupa de outra pessoa, no
caso a do capataz, suja-a de sangue e a deixa no local, levemente escondida.
Claro, ele fez isso imaginando que logo essa peça seria encontrada pela
polícia, que imediatamente prenderia o dono dela como culpado pelo crime. O que
acha?
- Não sei, Guilherme – respondi assim,
sem muita convicção. Confesso que eu estou confuso com tudo isso, mas não podemos
esquecer que ele tem um excelente álibi. Eu mesmo confirmei, lembra?
- Sim, eu sei: ele tem bom álibi,
confirmado no Mercado Municipal. E tem, também a favor dele, o horário
presumível da morte; quer dizer, no instante em que o crime ocorreu, conforme
mostra o relógio quebrado, ele estava fazendo compras, longe do casarão,
portanto.
O Dr. Alberto acrescentou, como que se
desdizendo:
- Que lástima; o horário marcado no relógio
protege os dois, tanto o caseiro como o capataz.
- Por isso é que temos que ter muita
calma – insistiu Guilherme. O que eu concluo, enfim, é que o Capataz jamais
cometeria o crime e esconderia sua própria camisa no local. Seria burro demais
se fizesse isso, pois estaria incriminando a si próprio, e isso não faz o menor
sentido. Quero dizer, do mesmo modo que ele se livraria da faca, que ninguém até
agora consegue encontrar, ele também se livraria da camisa, se houvesse
necessidade disso, concordam comigo?
Eu concordei com ele; o raciocínio era
inteiramente lógico, não havia como contestar.
Para nossa surpresa, afirmou o delegado,
peremptório.
- Pois então eu vou prender o caseiro
– e logo, ainda hoje.
Atônito, Guilherme ainda ponderou:
- Mas, e o mandado de prisão?
- Eu prendo hoje e amanhã eu vejo
isso. É mera formalidade.
E não esperou resposta para essa
ameaça de arbitrariedade; saiu rápido e sem nem mesmo pagar sua parte na conta.
[1]
Vítima do crime do Parque Municipal, de Belo Horizonte; sua camisa,
ensanguentada, foi apreendida pela polícia no local do crime depois disso nunca
mais foi encontrada para a perícia.
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