Detalhes do crime
Quando o patrão lhe dava instruções de
como simular o arrombamento da porta, o capataz, em gestos ágeis, desferiu as
três facadas. A vítima ainda tentou enfrentá-lo, debatendo-se, mas a surpresa
foi fator preponderante para o sucesso da empreitada; o Coronel não pode
resistir aos golpes, que foram fatais.
Com o corpo do patrão desfalecido ao
lado cama, desarranjou as cobertas, lençóis e travesseiro. Antes de sair, tomou
o cuidado de quebrar o relógio, jogando-o ao chão com violência; com o vidro
quebrado, adiantou os ponteiros para as dez horas, travando-os com um dos
cacos.
Além disso, também executou uma cilada
que, no seu entender, seria perfeita: conforme já previamente pensado, pegou
uma das suas camisas, sujou-a com o sangue do morto e colocou-a no
guarda-roupa:
- Entendi. E o que mais?
- Botei a minha camisa, ensanguentada,
no guarda-roupa, para que não ficasse aparente. Mas também não queria que
ficasse escondida para sempre; era assim, de propósito: ao ser encontrada, causaria
uma confusão na cabeça dos policiais, compreende?
Guilherme respondeu:
- Não, não compreendo, mas continue.
Disse que saiu pela porta dos fundos,
chaveando-a, sem deixar sinais que pudessem denunciar a sua presença; dali
andou a passos largos para a Mogyana, ainda escondido pela forte cerração. Fez
tudo isso correndo, rápido, a tempo de pegar o trem das nove e quinze, que já
estava de partida.
Guilherme, compenetrado na história
que ouvia, perguntou a ele:
- Quando e de quem o Dr. Assis adquiriu
as esmeraldas?
- Isso eu não sei dizer; ele nunca
comentou isso comigo.
- Está bem. Voltando à camisa: por que
justamente a sua camisa? Não estaria se delatando, não estaria se entregando?
- Não, respondeu resoluto.
E então nos contou uma interessante história:
- Uma vez eu li um livro, daqueles que
tem lá no casarão, que contava os feitos de um grande detetive inglês; numa das
histórias, um revolver foi encontrado no guarda-roupa de uma mulher, que era
suspeita de assassinato; claro, o encontro dessa arma fez convergir sobre ela todas
as linhas da investigação desenvolvidas pela polícia; foi então que entrou em
cena o famoso detetive, que imediatamente afastou a mulher do rol dos suspeitos,
com muita firmeza. Sabe qual foi o argumento aquele usou?
- Não, não sei, não faço ideia – respondeu
Guilherme, visivelmente contrafeito com a ignorância sobre o tema.
- Pois bem – continuou o capataz. Ele disse
que ninguém, ao menos em sã consciência, cometeria um crime e jogaria a arma no
seu próprio guarda-roupa. É um raciocínio que, a meu ver, tem uma lógica apenas
aparente. Bem, naquele caso, o detetive tinha razão, porque logo depois
conseguiu demonstrar que a mulher estava sendo vítima de uma armadilha: o
verdadeiro assassino foi descoberto e ficou provado que ele, de propósito,
jogara o revolver no guarda-roupa dela, querendo, com isso, desviar as
suspeitas que poderiam recair sobre ele[1].
- Está bem - retrucou Guilherme – já um
tanto impaciente. Mas o que isso tem a ver com o crime do casarão?
E então o capataz revelou:
- Eu acho que esse raciocínio é furado,
não é válido em todas as situações. Eu nunca concordei com a análise do
detetive inglês. Por mais famoso que ele seja, por mais eficiente que tenha
sido nas suas investigações, sempre achei que aquelas conclusões eram equivocadas.
- E porque pensa assim?
- Veja bem: se é verdade que ninguém
guardaria a arma do crime no seu próprio quarto, se é verdade que quando se
encontra a arma no quarto do suspeito é porque um terceiro a colocou ali de
propósito, tentando desviar o rumo das investigações, então eu concluí que,
enfim, se eu jogasse a minha própria camisa no local em que havia matado o Coronel,
jamais pensariam em mim como criminoso. Pensariam, como fez o detetive inglês,
que alguém teria matado o Dr. Assis e, de propósito, teria colocado a minha
camisa na cena do crime para desviar as atenções para a minha pessoa. Então,
poderiam pensar, por exemplo, que o culpado seria o caseiro: ele teria matado o
patrão e, tentando me incriminar, teria colocado a minha camisa no
guarda-roupa.
E arrematou, com um ar de triunfo:
- O senhor concorda com o meu
raciocínio, doutor?
Um tanto desconcertado, Guilherme
simplesmente não respondeu. Antes, fez-lhe nova pergunta:
- E a faca? O que fez com ela?
- Joguei na descida da serra, quando ia
para São Paulo; quando o trem estava atravessando o viaduto do Tajá, na garganta do inferno, joguei a faca no precipício.
Duvido que alguém a encontre, ainda mais agora, depois de tanto tempo.
Debruçado na janela do trem, como que admirando a paisagem e sem que ninguém
visse, simplesmente deixei-a cair barranco abaixo.
- Bem pensado... E para onde fugiu?
Como se escondeu durante esse tempo todo.
Contou-nos, então, que seguiu para Campinas,
de trem. Com receio de ser descoberto, evitou a costumeira baldeação para o
trem da Paulista, que ali seria obrigatória; ao invés disso, tomou um ônibus
para São Paulo. Uma vez na Capital paulista, perambulou pela região da Praça do
Patriarca, mas não foi para o hotel de costume.
- Eu já conhecia, de outras viagens, o
Edifício Prates, na Praça do Patriarca. É do mesmo homem que fez o casarão, por
coincidência. Na falta do que fazer, fiquei ali pelas redondezas, perambulando.
Contou ainda que, depois de uns oito
ou dez dias, entre uma e outra pensão, foi para o oeste de Goiás. Aliás, contou
que já tinha planos de sair da cidade; como ele queria se casar com a bela camareira,
foi juntando, ao longo do namoro, algumas economias. Acalentava a ideia de
formar família com a bonita índia, mas queria começar vida nova longe da
estância. Já tinha Goiânia na cabeça, mas achava a cidade grande demais para se
acostumar com ela.
Então, em fuga, foi tentar a sorte um
pouco mais longe, onde comprou uma pequena fazenda, a prazo, em Goyás Velho.
A partir desse ponto da história, sua
fisionomia foi se transformando; a narrativa ficou mais insegura, o rosto
passou a mostrar sinais de quem sofria muito. E revelou que, no começo, comprou
algumas cabeças de gado, com o que lhe restava das economias. Sobre as pedras,
disse que deixava os pacotes guardados, pois tinha receio de colocá-las no
comércio:
- Eu fui cauteloso, pois tinha medo de
que alguém soubesse da morte do coronel e do roubo das esmeraldas. Tinha que esperar
um tempo antes de vendê-las.
Os negócios com o gado prosperavam,
pois tinha experiência no ramo; nos últimos tempos, praticamente era ele quem
comprava e vendia um pouco de gado em nome do Coronel, estava acostumado com
negócios desse tipo.
- Então, eu me animei e fiz uma compra
maior de gado, gastando mais do que podia; essa compra eu fiz a fiado, para
pagar depois, e deu errado, não consegui pagar. Pensei em continuar guardando
as esmeraldas para outra oportunidade; mas as cobranças eram muitas e não deu
para segurar as pedras, tive que fazer uso delas.
- Um momento: e como é que conseguiu crédito
na praça, se aqui você não era conhecido?
- Inventei uma história, doutor. Alguns
anos depois da minha chegada, por todo o Estado de Goiás correu a fama de um
boiadeiro que ganhou uma bolada na loteria; era um homem pobre e sem instrução,
que ficou muito rico do dia para a noite. Não tinha nem dentes o sujeito, era banguela
e tudo, mas tinha as fotos em todos os jornais e revistas. Ele ficou muito
conhecido também pelas fazendas e pela quantidade de gado que ia comprando por tudo
quanto é lado. Ele ainda está por aí, virou um grande fazendeiro, o nome dele é
Mirão. Você já ouviu falar dele, não ouviu, doutor?
- Sim, eu sei quem é. Os jornais
falaram sobre ele, um sujeito ajuizado e que soube aproveitar bem o prêmio que
ganhou. Miron[2]
é o nome dele, se não estou enganado, e não Mirão.
- É, alguma coisa assim mesmo, não
tenho bem certeza, mas é parecido com isso. Bom, então eu inventei por aí que
estava a serviço dele, compreende? Dizia para todo mundo que era intermediário dele,
que trabalhava para ele, assim ninguém queria saber quem eu era. Todo mundo
queria fazer negócios com homem. Ele é honesto, paga o que combina e tem
palavra. E isso era bom para mim; achavam
que o dinheiro era dele, entende?
- Entendo, você usava a fama e o nome
dele, para fazer os seus negócios. Tinha medo que fossem investigar sua vida,
que chegassem até a morte do Coronel, o roubo das esmeraldas ...
- É verdade, é isso mesmo – respondeu
o capataz, com certo constrangimento. Assim ia tocando, quieto no meu canto. Acreditavam
que o negócio que eu tocava era do Miron, não meu.
Entretanto, aquela última compra foi
exagerada; empolgado com o crescimento dos negócios, acabou precipitando sua
própria ruína.
- As coisas até que iam bem, mas eu acabei
me enrolando com a compra do último gadinho. Acho que dei um passo maior do que
podia e não consegui pagar as prestações combinadas. Não tive outro jeito, tive
que usar uma parte das esmeraldas, como pagamento.
E continuou:
- Dei meio pacote, de uma vez só, para
o credor, que me procurava todos os dias.
E daí veio a desagradável surpresa,
que o derrubou: as esmeraldas eram falsas, tudo não passava de pedra brita
pintada de verde escuro.
Nesse ponto, ele insistiu que foi
surpreendido, que não esperava jamais aquele desfecho. Sempre confiou nos
laudos periciais, que vinham grampeados nos sacos plásticos, por isso, disse, sentia-se,
de certo modo, traído pelo Dr. Assis.
- Ora, se ele queria tanto salvar
aquilo, é porque eram legítimas, compreende? Inclusive, eu até levei prejuízo
nisso tudo, se o senhor quer saber.
Surpreso com a reclamação, Guilherme
questionou, com certa agressividade:
- Como assim, você matou e roubou o
Coronel e ainda acha que foi prejudicado por ele? Não estou entendendo direito
isso.
- Acontece que eu investi dinheiro na
minha viagem para cá, comprei terras com as minhas economias de muitos anos,
compreende? E tudo isso para que? Para ficar sem absolutamente nada – e ainda
por cima devendo.
- Bem, mas você matou e roubou! – voltou
a ponderar Guilherme.
- Sim, sei disso, mas tudo culpa do Coronel.
Se ele não tivesse a pretensão de enganar o juiz, quem sabe nada disso teria
acontecido, não é? E também ele não tinha nada que bolinar com a minha namorada
– ele sabia, todo mundo sabia que eu me casar com a índia, compreende?
Depois de descoberta a fraude, tentou
negar qualquer envolvimento nas falsificações; inventou uma história para a
polícia goiana, contando que recebera os pacotes de esmeraldas como se fossem boas;
contou que as recebeu como pagamento de um grande negócio feito no interior de São
Paulo e que tinha sido iludido na sua boa-fé. Usou como argumento a
certificação que constava dos pacotes, mas tudo foi em vão.
É que a polícia, de posse de todos os
lotes de esmeraldas apreendidas na residência do capataz, acabou descobrindo,
depois, que o tal perito que certificara a pureza das pedras não passava, na
verdade, de um conhecido estelionatário da capital paulista – inclusive, estava
cumprindo pena por uma série de golpes aplicados em sua vasta carreira de
falsário.
Não tendo mais como sustentar as
mentiras, admitiu a origem verdadeira daquelas pedras. Enfim, confessou o assassinato
o Coronel e que, em verdade, era um foragido da justiça.
- Foi a custa de muita pancada, porque
senão eu não contaria. Acho desaforo, isso; como eu já disse, também fui vítima
nisso tudo.
Guilherme o interrompeu:
- Pancadas, você estava dizendo?
- Sim, e muita; me penduraram numa trave
de ferro, fiquei de cabeça para baixo, joelhos dobrados e mãos amarradas nas
canelas. Até choque elétrico levei. Meu corpo rodava naquela barra de ferro.
Doía que só vendo...
Podíamos ver os sulcos formados nos
seus pulsos, ainda inchados; mostrou-nos as canelas, igualmente marcadas pelas
cordas que lhe passaram para amarrar o seu corpo no pau de arara.
E mais não disse – mas chorou
copiosamente, feito criança desamparada. Uma coisa era indisfarçável: o seu
alivio pela confissão feita, tal como se tivesse tirado um insuportável peso
das costas.
Guilherme se emocionou muito com o que
viu e com o que ouviu. De minha parte, senti engulhos; depois o país todo
ficaria sabendo da selvageria que se praticava em alguns porões policiais,
inclusive sob financiamento de grandes empresários.
[1] Trama
aparece no conto O problema da Ponte de
Thor, de Sir Arthur Conan Doyle.
[2] O
autor se refere a Miron de Souza, que ganhou prêmio da Loteria Esportiva, em
1975.
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