Postagem em destaque

Sobre o Blog

Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

domingo, 19 de julho de 2020

Livro - Reverso inclinado. Capítulo 12. Fantasmas rondam a cidade


Fantasmas rondam a cidade

Na quarta-feira, Dr. Alberto Dias cobrava uma solução para o caso; dizia que tinha que prestar contas ao Governador:
- O assessor dele já me ligou duas vezes. Ele quer a prisão do assassino o mais breve possível; e eu já nem sei mais o que responder. Temos pressa nisso.
Contamos tudo o que sabíamos; ele que aguardasse, então, outras novidades.
Mas a autoridade não dava ouvidos ao Guilherme; falava, inclusive, que já tinha elementos suficientes para fechar o relatório; contrariado com os veementes protestos do meu amigo, o delegado ficou de cara fechada.

Sem muito mais o que fazer, eu e Guilherme nos acomodamos numa saleta, no fundo da Delegacia, que servia de escritório para os investigadores. Acanhada, mais parecendo um quartinho de despejos, com uma escrivaninha surrada, ali ficamos, só nós dois, a pensar no caso. Tomamos um café frio e insosso, sobras da manhã.
De chofre, Guilherme, sem motivos aparentes, pôs-se a falar do caso do Mr. Jones. Para quem não conhece a história, Mr. Jones viveu na cidade durante muitos anos; diziam que era de Liverpool. Chegou aqui com algumas economias particulares, em busca de cura para uma crônica doença que, nas suas próprias palavras e em mal português, “me dá nos nervos”.
Acreditando que nossas águas sulfurosas faziam milagres de todas as ordens, frequentou o quanto pode os banhos públicos; morreu, todavia, de senilidade precoce, desamparado e solitário nestas terras. Conta a crônica local que Mr. Jones morreu nos porões do teatro de revistas, onde vivia de favores e dava aulas de inglês para as crianças da cidade. Morreu só e abandonado; jamais foi totalmente integrado à sociedade local, muito embora se tratasse de homem culto, de boa índole, honesto e educado.
Sem ter como se sustentar, viveu entre o casarão – onde fora contratado como educador dos filhos do Dr. Assis, e era por este mantido – e o teatro; ali, nas coxias, ele acabou falecendo durante a exibição de uma peça encenada por uma famosa companhia do Rio de Janeiro.
Algum tempo depois de sua morte, vários artistas, tanto os locais como os visitantes, passaram a relatar a presença de um fantasma, que teria sido visto nos camarins e nos corredores do teatro. Diziam, todos, ouvir vozes, quando não urros alucinantes, em alto e bom som. Certamente não por coincidência, os que residiam no casarão do Conde Prates também faziam relatos idênticos; enfim, o tal do fantasma do Mr. Jones deu de aparecer tanto num lugar como em outro, apavorando a todos.
 E esse fantasma falava um inglês perfeito, garantiu-me Guilherme; e acrescentou, em tom de gozação:
- Quem sabe se esse tal fantasma não é o Mr. Sherlock Holmes[1], que de vez em quando aparece aqui por estas bandas?
Ao que eu respondi, depressa, entrando na brincadeira:
- Não seria de todo mal, não. Daí, quem sabe ele pode nos ajudar com sua vasta experiência, não é mesmo? Talvez ele encontre a solução que tanto procuramos.
Rimos bastante do episódio. De repente, Guilherme ficou sério:
- Do jeito que a coisa está enrolada, meu caro, acho nem ele, o mais competente detetive que o mundo já conheceu, seria capaz de desvendar essa trama. O crime do casarão é tão intrincado que nem mesmo o famoso detetive inglês, se viesse aqui, em pessoa, vivinho da silva, poderia encontrar a solução. Quero dizer, nem ele daria conta desse caso, não acharia o culpado, seja lá quem for.
- Sei não, Guilherme, acho que ele descobriria, sim. Jamais, ao que eu saiba, ele deixou de mandar prender o culpado, não é?
Súbito, o meu amigo se transformou. Uma luz se acendeu na sua mente:
- Espere, meu caro. Holmes nem sempre teve sucesso nas suas investigações. Ele colecionou falhas, sim, embora isso seja pouco comentado. Ele ficou famoso pelos acertos, mas ninguém comenta seus fracassos; ocorre-me, agora, que ele não teve sucesso, por exemplo, diante do mais famoso e respeitado dos ladrões que o mundo já conheceu.
- O mais famoso dos ladrões? Quem é ele?
- Ora, o ladrão de casaca, não lembra? Cansou de enganar Holmes, nunca se deixou pegar. E isso me faz concluir que, se o caso que agora temos aqui, diante de nós, é insolúvel, é porque o assassino que procuramos não é outro senão ele, Arsène, o ladrão de casaca[2]!
- Arsène Lupin, o ladrão de casaca? Aqui, na cidade das águas?
- Sim, o próprio; só ele, com sua astúcia, teria enganado todo mundo; já enganou, e por diversas vezes, a polícia inglesa, a polícia francesa, já enganou muita gente e em várias ocasiões. Enfim, porque não enganaria a nós, brasileiros? Eu, sinceramente, não me surpreenderia com isso, meu caro.
 - Bem, acho que não pode ser, Guilherme – ponderei logo que me refiz do absurdo da hipótese. Arsène Lupin nasceu em 1874, se não me engano; se estiver vivo, o que é altamente improvável, estará velhinho, centenário e claudicante, não acha? Talvez nem teria condições físicas de vir aqui e cometer seus crimes. Quer dizer, ou morreu ou deve estar, inclusive, aposentado das sendas criminosas.
Mas Guilherme insistia:
- Que nada, aquele lá, mestre dos disfarces, bem que pode ainda estar vivo e esperto; ele é capaz de despistar e enganar a própria morte. É o campeão mundial dos disfarces, não se esqueça disso, meu caro. Quer dizer, poderia disfarçar a própria morte só para continuar com a vida de criminoso.
- Não creio ...
- Não acredita nisso? Ora, Arsène sempre foi capaz dos maiores engodos, à vista de todos e à luz do dia; ele é reconhecido pela polícia internacional exatamente por essa peculiar capacidade.
- Deixa disso, Guilherme, o francês acho até que já morreu faz tempo. Acredite em mim.
Meu amigo não se dava por vencido:
- Bem, se ele morreu, então ele se reencarnou, ou, então, voltou como se fosse o fantasma do porão, e assim continua praticando os crimes sem ser percebido. Quem me garante que não?
- Sei não, melhor esquecer os mortos; vamos deixar os fantasmas de lado e nos concentrar nos vivos: esses é que dão trabalho.
E assim ficamos, brincando e dando asas à imaginação, em puros devaneios. Pela janela percebemos as árvores, ao lado do estacionamento das viaturas, em constante balanço, sinal de que o vento frio varria a cidade.
Hoje pouco se fala sobreo fantasma do Mr. Jones: depois de algum tempo ninguém mais ouviu seus lamentos, as sessões de teatro voltaram à normalidade, sem gritos e nem urros. Creio que há pessoas que nem sequer sabe desse curioso episódio ocorrido nas Águas Virtuosas.
Mas que o fantasma dele atazanou muita gente nesta terra... Ah! Disso temos certeza! Os mais velhos comentam pouco sobre o assunto, mas não se esquecem.
Saímos da Delegacia quando já era tarde da noite e ainda não víamos como concluir adequadamente o inquérito. Seria mais um caso de assassinato sem descoberta de autoria?


[1] Personagem criado pelo escritor inglês Sir Arthur Conan Doyle.
[2] Personagem criado pelo escritor francês Maurice Leblanc, justamente para atrapalhar a vida do até então invencível Sherlock Holmes, investigador inglês.

Nenhum comentário:

Postar um comentário