Fantasmas rondam a cidade
Na quarta-feira, Dr. Alberto Dias cobrava
uma solução para o caso; dizia que tinha que prestar contas ao Governador:
- O assessor dele já me ligou duas
vezes. Ele quer a prisão do assassino o mais breve possível; e eu já nem sei
mais o que responder. Temos pressa nisso.
Contamos tudo o que sabíamos; ele que
aguardasse, então, outras novidades.
Mas a autoridade não dava ouvidos ao Guilherme;
falava, inclusive, que já tinha elementos suficientes para fechar o relatório;
contrariado com os veementes protestos do meu amigo, o delegado ficou de cara
fechada.
Sem muito mais o que fazer, eu e Guilherme
nos acomodamos numa saleta, no fundo da Delegacia, que servia de escritório
para os investigadores. Acanhada, mais parecendo um quartinho de despejos, com
uma escrivaninha surrada, ali ficamos, só nós dois, a pensar no caso. Tomamos um
café frio e insosso, sobras da manhã.
De chofre, Guilherme, sem motivos aparentes,
pôs-se a falar do caso do Mr. Jones. Para quem não conhece a história, Mr.
Jones viveu na cidade durante muitos anos; diziam que era de Liverpool. Chegou
aqui com algumas economias particulares, em busca de cura para uma crônica
doença que, nas suas próprias palavras e em mal português, “me dá nos nervos”.
Acreditando que nossas águas
sulfurosas faziam milagres de todas as ordens, frequentou o quanto pode os
banhos públicos; morreu, todavia, de senilidade precoce, desamparado e
solitário nestas terras. Conta a crônica local que Mr. Jones morreu nos porões
do teatro de revistas, onde vivia de favores e dava aulas de inglês para as
crianças da cidade. Morreu só e abandonado; jamais foi totalmente integrado à
sociedade local, muito embora se tratasse de homem culto, de boa índole, honesto
e educado.
Sem ter como se sustentar, viveu entre
o casarão – onde fora contratado como educador dos filhos do Dr. Assis, e era por
este mantido – e o teatro; ali, nas coxias, ele acabou falecendo durante a
exibição de uma peça encenada por uma famosa companhia do Rio de Janeiro.
Algum tempo depois de sua morte,
vários artistas, tanto os locais como os visitantes, passaram a relatar a presença
de um fantasma, que teria sido visto nos camarins e nos corredores do teatro.
Diziam, todos, ouvir vozes, quando não urros alucinantes, em alto e bom som. Certamente
não por coincidência, os que residiam no casarão do Conde Prates também faziam
relatos idênticos; enfim, o tal do fantasma do Mr. Jones deu de aparecer tanto
num lugar como em outro, apavorando a todos.
E esse fantasma falava um inglês perfeito, garantiu-me
Guilherme; e acrescentou, em tom de gozação:
- Quem sabe se esse tal fantasma não é
o Mr. Sherlock Holmes[1],
que de vez em quando aparece aqui por estas bandas?
Ao que eu respondi, depressa, entrando
na brincadeira:
- Não seria de todo mal, não. Daí,
quem sabe ele pode nos ajudar com sua vasta experiência, não é mesmo? Talvez
ele encontre a solução que tanto procuramos.
Rimos bastante do episódio. De
repente, Guilherme ficou sério:
- Do jeito que a coisa está enrolada,
meu caro, acho nem ele, o mais competente detetive que o mundo já conheceu,
seria capaz de desvendar essa trama. O crime
do casarão é tão intrincado que nem mesmo o famoso detetive inglês, se
viesse aqui, em pessoa, vivinho da silva, poderia encontrar a solução. Quero
dizer, nem ele daria conta desse caso, não acharia o culpado, seja lá quem for.
- Sei não, Guilherme, acho que ele descobriria,
sim. Jamais, ao que eu saiba, ele deixou de mandar prender o culpado, não é?
Súbito, o meu amigo se transformou.
Uma luz se acendeu na sua mente:
- Espere, meu caro. Holmes nem sempre
teve sucesso nas suas investigações. Ele colecionou falhas, sim, embora isso
seja pouco comentado. Ele ficou famoso pelos acertos, mas ninguém comenta seus
fracassos; ocorre-me, agora, que ele não teve sucesso, por exemplo, diante do
mais famoso e respeitado dos ladrões que o mundo já conheceu.
- O mais famoso dos ladrões? Quem é
ele?
- Ora, o ladrão de casaca, não lembra?
Cansou de enganar Holmes, nunca se deixou pegar. E isso me faz concluir que, se
o caso que agora temos aqui, diante de nós, é insolúvel, é porque o assassino
que procuramos não é outro senão ele, Arsène, o ladrão de casaca[2]!
- Arsène Lupin, o ladrão de casaca? Aqui, na cidade das águas?
- Sim, o próprio; só ele, com sua
astúcia, teria enganado todo mundo; já enganou, e por diversas vezes, a polícia
inglesa, a polícia francesa, já enganou muita gente e em várias ocasiões. Enfim,
porque não enganaria a nós, brasileiros? Eu, sinceramente, não me surpreenderia
com isso, meu caro.
- Bem, acho que não pode ser, Guilherme – ponderei
logo que me refiz do absurdo da hipótese. Arsène Lupin nasceu em 1874, se não
me engano; se estiver vivo, o que é altamente improvável, estará velhinho, centenário
e claudicante, não acha? Talvez nem teria condições físicas de vir aqui e
cometer seus crimes. Quer dizer, ou morreu ou deve estar, inclusive, aposentado
das sendas criminosas.
Mas Guilherme insistia:
- Que nada, aquele lá, mestre dos
disfarces, bem que pode ainda estar vivo e esperto; ele é capaz de despistar e
enganar a própria morte. É o campeão mundial dos disfarces, não se esqueça
disso, meu caro. Quer dizer, poderia disfarçar a própria morte só para continuar
com a vida de criminoso.
- Não creio ...
- Não acredita nisso? Ora, Arsène sempre
foi capaz dos maiores engodos, à vista de todos e à luz do dia; ele é reconhecido
pela polícia internacional exatamente por essa peculiar capacidade.
- Deixa disso, Guilherme, o francês acho
até que já morreu faz tempo. Acredite em mim.
Meu amigo não se dava por vencido:
- Bem, se ele morreu, então ele se
reencarnou, ou, então, voltou como se fosse o fantasma do porão, e assim
continua praticando os crimes sem ser percebido. Quem me garante que não?
- Sei não, melhor esquecer os mortos;
vamos deixar os fantasmas de lado e nos concentrar nos vivos: esses é que dão
trabalho.
E assim ficamos, brincando e dando
asas à imaginação, em puros devaneios. Pela janela percebemos as árvores, ao
lado do estacionamento das viaturas, em constante balanço, sinal de que o vento
frio varria a cidade.
Hoje pouco se fala sobreo fantasma do Mr.
Jones: depois de algum tempo ninguém mais ouviu seus lamentos, as sessões de
teatro voltaram à normalidade, sem gritos e nem urros. Creio que há pessoas que
nem sequer sabe desse curioso episódio ocorrido nas Águas Virtuosas.
Mas que o fantasma dele atazanou muita
gente nesta terra... Ah! Disso temos certeza! Os mais velhos comentam pouco
sobre o assunto, mas não se esquecem.
Saímos da Delegacia quando já era
tarde da noite e ainda não víamos como concluir adequadamente o inquérito. Seria
mais um caso de assassinato sem descoberta de autoria?
[1]
Personagem criado pelo escritor inglês Sir Arthur Conan Doyle.
[2]
Personagem criado pelo escritor francês Maurice Leblanc, justamente para
atrapalhar a vida do até então invencível Sherlock Holmes, investigador inglês.
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