A camareira aparece de barriga
O Dr. Alberto Dias fez conforme prometido
e ordenou a prisão do caseiro. Pego de surpresa quando estava chegando da
fazenda, na noite de domingo, ele esboçou apenas uma frágil reação, insuficiente
para evitar que fosse conduzido para a cadeia.
O juiz criminal, a quem coube a
análise do pedido de prisão, expediu o mandado no final da tarde de segunda-feira,
já sabendo que o caseiro já estava recolhido desde a noite anterior. Ao que
consta, assim procedeu graças à promessa que o delegado lhe fez de encerrar
imediatamente o inquérito, justificando a medida tomada.
Guilherme procurou persuadir o
delegado a mudar de ideia; tentou convencê-lo de que aquele ato não fazia muito
sentido, pois as provas coletadas eram frágeis demais para sustentar a conclusão
radical.
Foi então que o Dr. Alberto, irredutível,
comunicou-lhe, também, que o inquérito já estava encerrado.
- Mas, como assim, doutor? Ainda tem
muita coisa para se descobrir.
- Tinha muita coisa, Guilherme,
tinha... agora não tem mais. Pronto, acabou.
Dentre outros argumentos, disse que o
inquérito estava demorando muito para ser concluído e que não podia ficar
parado, sem fazer nada.
De nada adiantou argumentar que o
crime era recente demais:
- É muito cedo, Doutor Alberto; pela
lei ainda temos tempo pela frente. E, se for necessário, ainda dá para
prorrogar o prazo.
Certamente pressionado pelos
superiores e contrariando frontalmente as recomendações do investigador, o
delegado produziu um relatório em que concluía pela presença de “fortes indícios
de que o caseiro praticou o homicídio e, após, subtraiu as esmeraldas,
tipificando, pois, o crime de latrocínio – roubo precedido de morte da vítima”.
Guilherme não aprovou aquele texto. Ao
revés disso, não deixou de argumentar que as provas contra o caseiro eram superficiais
e que, por isso, não seriam suficientes para lhe imputar a responsabilidade pela
conduta criminosa. Ponderou, em diversas ocasiões, que o crime tinha acontecido
sem testemunhas presenciais; ademais disso, afirmava ele, sequer a arma foi
localizada – e isso ainda sem se falar que, no horário do assassinato, o
acusado estava fora de casa, fazendo compras com os demais colegas de trabalho.
E tinha, também, a questão da camisa manchada de sangue, que era do capataz, encontrada no local do crime.
O Dr. Alberto foi enfático:
- Aquela história da camisa, você bem
sabe, foi planejada pelo caseiro. Você mesmo disse isso, Guilherme, que o capataz
não ia fazer a besteira de deixar pistas flagrantes contra ele mesmo. Lembra
que me disse isso? E nisso eu concordo
plenamente com você; então eu concluo que o caseiro matou, roubou e depois
inventou pistas para desviar nossa atenção para o capataz. Estou convencido
disso e pronto.
O delegado queria, a todo custo,
encontrar um culpado. Só isso era capaz de explicar o apressado relatório que
encaminhou para o juiz de instrução. Pensando bem, talvez nem ele acreditasse
muito no que tinha escrito naquele documento.
Frustradas foram, pois, as tentativas
feitas para retardar um pouco mais a conclusão do caso:
- É possível, doutor, que, com mais
calma e mais investigações, nós poderemos progredir nas pesquisas e encontrar
dados de maior solidez para o relatório conclusivo.
- Não, Guilherme, nós já demoramos,
não dá mais para segurar; já temos o bastante. Manda isso embora e pronto. O
juiz já está esperando.
O meu amigo jamais assinaria aquilo;
mas nada podia fazer, por uma questão de hierarquia. Tudo ficou por conta
exclusiva do Dr. Alberto Dias. A autoridade máxima encarregada de assinar o
inquérito era ele. Paciência.
O caseiro amargou um mês de cela.
Guilherme comentou comigo, sobre esse
episódio.
- É por essas e outras, meu caro, que
eu me desanimo, sabe? Tem hora que penso em largar tudo isso e me virar de
outro jeito. Além de não ter nem material suficiente para trabalhar, ainda tenho
que aguentar esses amadorismos. Isso cansa, irrita, sabe?
- Sim, imagino a sua frustração – eu
lhe respondi.
Lógico, eu também estava chateado com
a interrupção dos nossos trabalhos. Sentia que poderia haver mais progressos,
mas não tínhamos outro remédio a não ser acatar as decisões do delegado.
Para sorte do caseiro, em seu favor
foi passada uma ordem de soltura, pelo Tribunal, em Belo Horizonte. Foi solto
para acompanhar, livre, o processo aberto contra ele, mas com a condição de não
se ausentar da cidade sem prévia autorização do juiz. O Promotor Público,
convencido pelas conclusões do Inquérito, assinou requerimento de abertura do
processo crime, caprichando nas acusações.
Ele ganhou a liberdade, mas perdeu o
emprego imediatamente. O filho do Coronel não admitiu a entrada dele no casarão
nem para pegar seus pertences; das grades foi diretamente para a casa de
conhecidos.
De outro lado, nunca mais se teve
notícia do administrador: ele foi visto no casarão no dia do crime, viajou sem
motivo aparente, ou seja, praticou uma série de atos que não foram
adequadamente explicados e as investigações não avançaram nessa linha. Em
outras palavras, não seria exagero se também ele fosse apontado como o autor do
crime – e, além de tudo, ainda havia a sua camisa, que foi encontrada no
guarda-roupa do Coronel.
Enfim, já dávamos esses episódios como
águas passadas quando, numa tarde de Julho, no café da praça central, Guilherme
me contou uma grande novidade, que poderia alterar os rumos do processo.
O novo mês trouxe consigo um inverno
rigoroso, que entrou muitos dias afora. Depois de uma estiagem de uns trinta ou
quarenta dias, a temperatura caiu assustadoramente. A água congelava nas
torneiras, principalmente nos bairros mais altos e afastados da área central.
Nas ruas de terra batida, sem calçamento, o fenômeno chegava a ser até
corriqueiro: praticamente em todos os inversos as torneiras perdiam a vazão, ao
menos no amanhecer do dia. Com o sol subindo é que, pouco a pouco, o
descongelamento ocorria, para alívio da população.
Os agasalhos pesados tolhiam nossos
movimentos. O vento cortava nossas faces, deixando-as rosadas. Guilherme me
falava sobre algumas suposições interessantes; penso até que, se tivesse tido
tempo de investigar mais, poderia ter dado maiores contribuições para o
trabalho da polícia. Ele tinha, sem
dúvidas, importantes linhas de investigação pela frente, mas foi impedido de
trabalhar por conta da pressa do delegado.
Por exemplo, ele falava da
possibilidade de haver dois criminosos, um ladrão e um assassino, sem que um
soubesse da conduta do outro.
- Mas, como assim?
E então ele me explicou sobre essa
possibilidade.
- Imagine a cena: o capataz saiu junto
com os outros empregados, depois retornou ao casarão e, por um motivo qualquer,
matou o patrão e fugiu; logo depois, o caseiro também voltou e, vendo o Coronel
morto, roubou as esmeraldas. Nessa hipótese, um não sabe da ação do outro. Não
acha que esse cenário é plausível?
- É, tenho que admitir: é uma boa
possibilidade, sem dúvida. E nesse caso o assassino não teria roubado nada. Em
outras palavras: um matou e, depois, o outro furtou as pedras, em atos e
momentos distintos entre si.
- Exatamente – respondeu Guilherme. Nessa
hipótese, pode até ser que o capataz tivesse a intenção de roubar as
esmeraldas, mas não encontrou nada e por isso matou o patrão, deixando o caseiro
livre para pegar as esmeraldas.
E o raciocínio do investigador
continuava:
- E, para complicar um pouquinho mais:
ainda pode ser que o capataz tenha matado o Coronel e roubado as esmeraldas. Quer
dizer, o capataz teria cometido os dois crimes e, depois, desaparecido; deu um
golpe espetacular e deixou o Coronel morto atrás de si. E, depois, apareceu o caseiro,
que já sabia da existência das gemas e estava de olho comprido nelas, mas nada
encontrou para roubar.
E prosseguiu:
- Diante do corpo do Coronel, estirado
no quarto, e temendo ser acusado pela Polícia, montou a cena para incriminar o capataz:
procurou a camisa do colega, manchou-a com o sangue do morto e a deixou no
local, de propósito. Concorda?
- Sim, Guilherme, concordo plenamente.
Mas, observe: acho que também poderia ter ocorrido uma terceira hipótese, você
não acha?
- Como, meu caro? Não estou
entendendo.
Então, expliquei:
- Veja: o capataz entrou no casarão, furtou
as esmeraldas, sorrateiramente, sem ser visto, e fugiu. Depois, o caseiro,
voltando do Mercado Municipal, matou o patrão pensando em ficar com as
esmeraldas; mas, surpreso, percebeu que algum gatuno fora mais esperto que ele
e nada mais lhe restava para ser roubado. Então, armou a cena da camisa para
incriminar o capataz, que poderia ser acusado dos dois fatos; passados alguns
minutos, avisou os demais colegas sobre o assassinato. Não pode ter sido assim?
- Muito bem, meu caro. Está ficando
bom nisso, não é não? Pois você está certo: essa inversão, primeiro roubo e
depois morte, por pessoas distintas, bem pode ter acontecido; sim, concordo com
você.
Claro, gostei do elogio. Mas tudo era
muito simples, pensei comigo mesmo. Ou não era?
Ainda tínhamos muitas e variadas
linhas de investigação pela frente, de modo que o desânimo abatia o meu amigo
ao se lembrar do delegado fechando o relatório; foi, sem dúvida alguma, uma
decisão atabalhoada e sem a consistência necessária.
O chocolate quente descia gostoso,
propício para a ocasião. Admirávamos a cordilheira que emoldura os limites
norte da cidade, bem alta na nossa frente. A mata fechada que a cobre é cortada
por uma trilha íngreme, que leva ao topo do morro. É uma subida um tanto
difícil de ser feita, mas a vista que se tem lá do alto compensa todo o esforço
do caminhante.
Foi nessa ocasião que Guilherme me
disse:
- Você está sabendo da novidade, meu
caro?
- Que novidade?
- A camareira está de barriga.
Soubemos disso ontem, lá na Delegacia.
- Embuchada? Ela e o capataz
namoravam... Quer dizer que o capataz encheu a moça e depois deu no pé? Safado
ele, não é?
- Parece que sim. O Dr. Alberto ouviu
essa história de gravidez e convocou a moça, ontem, para ser ouvida na Delegacia.
E ela afirmou que o pai da criança é mesmo o capataz. Disse que tiveram vários
encontros amorosos, lá no casarão. Disse, inclusive, que pensavam em casamento,
mas a morte do patrão e o sumiço do namorado colocaram ponto final na história,
para azar dela.
- Ora, ora, que interessante – eu
disse. Pensa comigo, Guilherme: pode até ser que o capataz tenha fugido porque ficou
sabendo da gravidez da moça; não querendo assumir a paternidade, deu nas
canelas.
- Pois é, acho que foi isso mesmo o
que aconteceu, porque ele sabia da gravidez. Ela lhe contou sobre isso naquele sábado
de noite, véspera do crime. Segundo a moça disse ao Dr. Alberto, o rapaz ficou
transtornado, porque não queria filhos naquela fase da sua vida.
- Então, está explicado o
desaparecimento dele. Fugiu porque queria fugir da moça, sem que a fuga tivesse
qualquer ligação com a morte do patrão e nem com as esmeraldas. Aproveitou a
ida a serviço para São Paulo e não voltou mais. E, veja bem, Guilherme, pode
até ser que o capataz tenha contado essa história para o caseiro, já avisando
que ia dar no pé; com isso, deu ao caseiro a oportunidade de matar o patrão e
roubar, botando a culpa no pobre coitado do fugitivo.
Guilherme refletiu um pouco sobre isso
e depois comentou:
- Aparentemente sim, mas ainda tem a
questão da camisa; admito, meu caro, que cada vez mais eu tenho dúvidas sobre o
caso. Por mim, sei não, mas acho que o inquérito poderia ter sido arquivado com
a conclusão de “autoria desconhecida” – quer dizer, sem conclusão alguma.
O que sabíamos era que a camareira e a
cozinheira continuaram trabalhando no casarão, acolhidas que foram pelo filho
do Coronel. E mesmo agora, depois de revelado o seu estado interessante, ali
continuava, sem indisposição por parte do novo patrão.
A propósito, disse Guilherme:
- Aliás, há quem diga, lá na Delegacia,
que o verdadeiro pai da criança é o filho do falecido; e que ele não reconheceria
a paternidade para não dividir o pouco que ainda sobra da herança paterna. O
quanto tem isso de verdade, confesso, meu caro, que não sei.
- Isso eu acho que não pode ser –
afirmei. Afinal, o capataz e a camareira eram namorados, lembra? O mais lógico
é que esteja grávida dele. Se bem que, por outro lado, se a criança é neta do
Coronel e ela revelar esse fato, certamente criará um escândalo; enfim, será
colocada na rua, ficando desamparada, não acha?
- Ah! Sim, isso é verdade; não ficaria
bem esse tipo de escândalo. Então, por certo seria melhor permanecer sob a
proteção da família, imputando a paternidade para terceiros.
- Seja quem for o pai – disse Guilherme,
finalizando a conversa – o que eu sei é que a criança deve nascer daqui a pouco.
Alguns dias depois, a camareira deu à luz uma robusta menina, morena bonita, mas de rosto indefinido.
E ambas ficaram com o filho do Dr. Assis, no casarão da praça.
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