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Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

terça-feira, 21 de julho de 2020

Livro - Reverso inclinado. Capítulo 14. A camareira aparece de barriga

A camareira aparece de barriga

O Dr. Alberto Dias fez conforme prometido e ordenou a prisão do caseiro. Pego de surpresa quando estava chegando da fazenda, na noite de domingo, ele esboçou apenas uma frágil reação, insuficiente para evitar que fosse conduzido para a cadeia.
O juiz criminal, a quem coube a análise do pedido de prisão, expediu o mandado no final da tarde de segunda-feira, já sabendo que o caseiro já estava recolhido desde a noite anterior. Ao que consta, assim procedeu graças à promessa que o delegado lhe fez de encerrar imediatamente o inquérito, justificando a medida tomada.

Guilherme procurou persuadir o delegado a mudar de ideia; tentou convencê-lo de que aquele ato não fazia muito sentido, pois as provas coletadas eram frágeis demais para sustentar a conclusão radical.
Foi então que o Dr. Alberto, irredutível, comunicou-lhe, também, que o inquérito já estava encerrado.
- Mas, como assim, doutor? Ainda tem muita coisa para se descobrir.
- Tinha muita coisa, Guilherme, tinha... agora não tem mais. Pronto, acabou.
Dentre outros argumentos, disse que o inquérito estava demorando muito para ser concluído e que não podia ficar parado, sem fazer nada.
De nada adiantou argumentar que o crime era recente demais:
- É muito cedo, Doutor Alberto; pela lei ainda temos tempo pela frente. E, se for necessário, ainda dá para prorrogar o prazo.
Certamente pressionado pelos superiores e contrariando frontalmente as recomendações do investigador, o delegado produziu um relatório em que concluía pela presença de “fortes indícios de que o caseiro praticou o homicídio e, após, subtraiu as esmeraldas, tipificando, pois, o crime de latrocínio – roubo precedido de morte da vítima”.
Guilherme não aprovou aquele texto. Ao revés disso, não deixou de argumentar que as provas contra o caseiro eram superficiais e que, por isso, não seriam suficientes para lhe imputar a responsabilidade pela conduta criminosa. Ponderou, em diversas ocasiões, que o crime tinha acontecido sem testemunhas presenciais; ademais disso, afirmava ele, sequer a arma foi localizada – e isso ainda sem se falar que, no horário do assassinato, o acusado estava fora de casa, fazendo compras com os demais colegas de trabalho. E tinha, também, a questão da camisa manchada de sangue, que era do capataz, encontrada no local do crime.
O Dr. Alberto foi enfático:
- Aquela história da camisa, você bem sabe, foi planejada pelo caseiro. Você mesmo disse isso, Guilherme, que o capataz não ia fazer a besteira de deixar pistas flagrantes contra ele mesmo. Lembra que me disse isso?  E nisso eu concordo plenamente com você; então eu concluo que o caseiro matou, roubou e depois inventou pistas para desviar nossa atenção para o capataz. Estou convencido disso e pronto.
O delegado queria, a todo custo, encontrar um culpado. Só isso era capaz de explicar o apressado relatório que encaminhou para o juiz de instrução. Pensando bem, talvez nem ele acreditasse muito no que tinha escrito naquele documento.
Frustradas foram, pois, as tentativas feitas para retardar um pouco mais a conclusão do caso:
- É possível, doutor, que, com mais calma e mais investigações, nós poderemos progredir nas pesquisas e encontrar dados de maior solidez para o relatório conclusivo.
- Não, Guilherme, nós já demoramos, não dá mais para segurar; já temos o bastante. Manda isso embora e pronto. O juiz já está esperando.
O meu amigo jamais assinaria aquilo; mas nada podia fazer, por uma questão de hierarquia. Tudo ficou por conta exclusiva do Dr. Alberto Dias. A autoridade máxima encarregada de assinar o inquérito era ele. Paciência.
O caseiro amargou um mês de cela.
Guilherme comentou comigo, sobre esse episódio.
- É por essas e outras, meu caro, que eu me desanimo, sabe? Tem hora que penso em largar tudo isso e me virar de outro jeito. Além de não ter nem material suficiente para trabalhar, ainda tenho que aguentar esses amadorismos. Isso cansa, irrita, sabe?
- Sim, imagino a sua frustração – eu lhe respondi.
Lógico, eu também estava chateado com a interrupção dos nossos trabalhos. Sentia que poderia haver mais progressos, mas não tínhamos outro remédio a não ser acatar as decisões do delegado.
Para sorte do caseiro, em seu favor foi passada uma ordem de soltura, pelo Tribunal, em Belo Horizonte. Foi solto para acompanhar, livre, o processo aberto contra ele, mas com a condição de não se ausentar da cidade sem prévia autorização do juiz. O Promotor Público, convencido pelas conclusões do Inquérito, assinou requerimento de abertura do processo crime, caprichando nas acusações.
Ele ganhou a liberdade, mas perdeu o emprego imediatamente. O filho do Coronel não admitiu a entrada dele no casarão nem para pegar seus pertences; das grades foi diretamente para a casa de conhecidos.
De outro lado, nunca mais se teve notícia do administrador: ele foi visto no casarão no dia do crime, viajou sem motivo aparente, ou seja, praticou uma série de atos que não foram adequadamente explicados e as investigações não avançaram nessa linha. Em outras palavras, não seria exagero se também ele fosse apontado como o autor do crime – e, além de tudo, ainda havia a sua camisa, que foi encontrada no guarda-roupa do Coronel.
Enfim, já dávamos esses episódios como águas passadas quando, numa tarde de Julho, no café da praça central, Guilherme me contou uma grande novidade, que poderia alterar os rumos do processo.
O novo mês trouxe consigo um inverno rigoroso, que entrou muitos dias afora. Depois de uma estiagem de uns trinta ou quarenta dias, a temperatura caiu assustadoramente. A água congelava nas torneiras, principalmente nos bairros mais altos e afastados da área central. Nas ruas de terra batida, sem calçamento, o fenômeno chegava a ser até corriqueiro: praticamente em todos os inversos as torneiras perdiam a vazão, ao menos no amanhecer do dia. Com o sol subindo é que, pouco a pouco, o descongelamento ocorria, para alívio da população.
Os agasalhos pesados tolhiam nossos movimentos. O vento cortava nossas faces, deixando-as rosadas. Guilherme me falava sobre algumas suposições interessantes; penso até que, se tivesse tido tempo de investigar mais, poderia ter dado maiores contribuições para o trabalho da polícia.  Ele tinha, sem dúvidas, importantes linhas de investigação pela frente, mas foi impedido de trabalhar por conta da pressa do delegado.
Por exemplo, ele falava da possibilidade de haver dois criminosos, um ladrão e um assassino, sem que um soubesse da conduta do outro.
- Mas, como assim?
E então ele me explicou sobre essa possibilidade.
- Imagine a cena: o capataz saiu junto com os outros empregados, depois retornou ao casarão e, por um motivo qualquer, matou o patrão e fugiu; logo depois, o caseiro também voltou e, vendo o Coronel morto, roubou as esmeraldas. Nessa hipótese, um não sabe da ação do outro. Não acha que esse cenário é plausível?
- É, tenho que admitir: é uma boa possibilidade, sem dúvida. E nesse caso o assassino não teria roubado nada. Em outras palavras: um matou e, depois, o outro furtou as pedras, em atos e momentos distintos entre si.
- Exatamente – respondeu Guilherme. Nessa hipótese, pode até ser que o capataz tivesse a intenção de roubar as esmeraldas, mas não encontrou nada e por isso matou o patrão, deixando o caseiro livre para pegar as esmeraldas.
E o raciocínio do investigador continuava:
- E, para complicar um pouquinho mais: ainda pode ser que o capataz tenha matado o Coronel e roubado as esmeraldas. Quer dizer, o capataz teria cometido os dois crimes e, depois, desaparecido; deu um golpe espetacular e deixou o Coronel morto atrás de si. E, depois, apareceu o caseiro, que já sabia da existência das gemas e estava de olho comprido nelas, mas nada encontrou para roubar.
E prosseguiu:
- Diante do corpo do Coronel, estirado no quarto, e temendo ser acusado pela Polícia, montou a cena para incriminar o capataz: procurou a camisa do colega, manchou-a com o sangue do morto e a deixou no local, de propósito. Concorda?
- Sim, Guilherme, concordo plenamente. Mas, observe: acho que também poderia ter ocorrido uma terceira hipótese, você não acha?
- Como, meu caro? Não estou entendendo.
Então, expliquei:
- Veja: o capataz entrou no casarão, furtou as esmeraldas, sorrateiramente, sem ser visto, e fugiu. Depois, o caseiro, voltando do Mercado Municipal, matou o patrão pensando em ficar com as esmeraldas; mas, surpreso, percebeu que algum gatuno fora mais esperto que ele e nada mais lhe restava para ser roubado. Então, armou a cena da camisa para incriminar o capataz, que poderia ser acusado dos dois fatos; passados alguns minutos, avisou os demais colegas sobre o assassinato. Não pode ter sido assim?
- Muito bem, meu caro. Está ficando bom nisso, não é não? Pois você está certo: essa inversão, primeiro roubo e depois morte, por pessoas distintas, bem pode ter acontecido; sim, concordo com você.
Claro, gostei do elogio. Mas tudo era muito simples, pensei comigo mesmo. Ou não era?
Ainda tínhamos muitas e variadas linhas de investigação pela frente, de modo que o desânimo abatia o meu amigo ao se lembrar do delegado fechando o relatório; foi, sem dúvida alguma, uma decisão atabalhoada e sem a consistência necessária.
O chocolate quente descia gostoso, propício para a ocasião. Admirávamos a cordilheira que emoldura os limites norte da cidade, bem alta na nossa frente. A mata fechada que a cobre é cortada por uma trilha íngreme, que leva ao topo do morro. É uma subida um tanto difícil de ser feita, mas a vista que se tem lá do alto compensa todo o esforço do caminhante.
Foi nessa ocasião que Guilherme me disse:
- Você está sabendo da novidade, meu caro?
- Que novidade?
- A camareira está de barriga. Soubemos disso ontem, lá na Delegacia.
- Embuchada? Ela e o capataz namoravam... Quer dizer que o capataz encheu a moça e depois deu no pé? Safado ele, não é?
- Parece que sim. O Dr. Alberto ouviu essa história de gravidez e convocou a moça, ontem, para ser ouvida na Delegacia. E ela afirmou que o pai da criança é mesmo o capataz. Disse que tiveram vários encontros amorosos, lá no casarão. Disse, inclusive, que pensavam em casamento, mas a morte do patrão e o sumiço do namorado colocaram ponto final na história, para azar dela.
- Ora, ora, que interessante – eu disse. Pensa comigo, Guilherme: pode até ser que o capataz tenha fugido porque ficou sabendo da gravidez da moça; não querendo assumir a paternidade, deu nas canelas.
- Pois é, acho que foi isso mesmo o que aconteceu, porque ele sabia da gravidez. Ela lhe contou sobre isso naquele sábado de noite, véspera do crime. Segundo a moça disse ao Dr. Alberto, o rapaz ficou transtornado, porque não queria filhos naquela fase da sua vida.
- Então, está explicado o desaparecimento dele. Fugiu porque queria fugir da moça, sem que a fuga tivesse qualquer ligação com a morte do patrão e nem com as esmeraldas. Aproveitou a ida a serviço para São Paulo e não voltou mais. E, veja bem, Guilherme, pode até ser que o capataz tenha contado essa história para o caseiro, já avisando que ia dar no pé; com isso, deu ao caseiro a oportunidade de matar o patrão e roubar, botando a culpa no pobre coitado do fugitivo.
Guilherme refletiu um pouco sobre isso e depois comentou:
- Aparentemente sim, mas ainda tem a questão da camisa; admito, meu caro, que cada vez mais eu tenho dúvidas sobre o caso. Por mim, sei não, mas acho que o inquérito poderia ter sido arquivado com a conclusão de “autoria desconhecida” – quer dizer, sem conclusão alguma.
O que sabíamos era que a camareira e a cozinheira continuaram trabalhando no casarão, acolhidas que foram pelo filho do Coronel. E mesmo agora, depois de revelado o seu estado interessante, ali continuava, sem indisposição por parte do novo patrão.
A propósito, disse Guilherme:
- Aliás, há quem diga, lá na Delegacia, que o verdadeiro pai da criança é o filho do falecido; e que ele não reconheceria a paternidade para não dividir o pouco que ainda sobra da herança paterna. O quanto tem isso de verdade, confesso, meu caro, que não sei.
- Isso eu acho que não pode ser – afirmei. Afinal, o capataz e a camareira eram namorados, lembra? O mais lógico é que esteja grávida dele. Se bem que, por outro lado, se a criança é neta do Coronel e ela revelar esse fato, certamente criará um escândalo; enfim, será colocada na rua, ficando desamparada, não acha?
- Ah! Sim, isso é verdade; não ficaria bem esse tipo de escândalo. Então, por certo seria melhor permanecer sob a proteção da família, imputando a paternidade para terceiros.
- Seja quem for o pai – disse Guilherme, finalizando a conversa – o que eu sei é que a criança deve nascer daqui a pouco.
Alguns dias depois, a camareira deu à luz uma robusta menina, morena bonita, mas de rosto indefinido.
E ambas ficaram com o filho do Dr. Assis, no casarão da praça.

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