Checando álibis
A segunda-feira de manhã foi tirada
para a confirmação dos álibis e das informações obtidas no dia anterior; a
chuva ainda continuava a cair, embora mais fina; não tínhamos como dispensar
botas e guarda-chuvas. A neblina amanheceu cerrada, o vento constante e muito
gelado obrigava o uso de blusas grossas. Normalmente essas intempéries
permanecem durante muitos dias seguidos, são características das
Águas Virtuosas.
Passei pelas bancas de jornais e, como
eu já esperava, nem uma palavra sequer sobre o assassinato. Sim, a morte foi
manchete nos dois jornais locais, mas nenhuma das notícias falava em crime; o
leitor menos avisado entenderia que o Coronel Assis teria morrido de morte
natural. O silêncio dos jornalistas dizia muito sobre as influências do morto
e, por extensão, da sua família.
Fui ter ao Mercado Municipal, que ficava na avenida principal, numa esquina logo
depois do prédio da prefeitura; calculei que dez minutos, no máximo quinze, a
passos lentos, seriam suficientes para se alcançar o Mercadão, como carinhosamente é chamado, a partir da casa
do Coronel Assis.
Ouvi de vários e conhecidos
comerciantes que, realmente, os empregados do Coronel estiveram ali no domingo,
fazendo compras diversas e demoradas. O que mais chamou a atenção deles foi o
fato de que raras vezes eram vistos no local.
- Sempre é o capataz que vem por aqui,
aos sábados. Mas, quando, mais tarde, a notícia do assassinato se espalhou pela
cidade, logo pensei que o criminoso tinha se aproveitado justamente da ocasião
em que o morto ficara sozinho no casarão. Lógico, assim ele cometeu o crime com
mais facilidade e sem testemunhas – disse-me um vendedor de tomates.
Mas não faziam a menor ideia de quem
poderia ter sido o homicida. Nada podiam acrescentar sobre isso.
E ninguém lançou qualquer suspeita
sobre os empregados. Antes pelo contrário, muitos foram os elogios que
receberam; sabiam que o Coronel era severo e não admitia liberdades, por isso ostentavam
comportamento exemplar. Eu mesmo não esperava qualquer informação diferente
daquela, pois já sabia que trabalhavam há muitos anos no casarão; portanto,
eram plenamente conhecidos da família e nunca houve fato que pudesse ser
lançado contra qualquer um deles.
Enfim, cozinheira, camareira e caseiro
estiveram, todos, pelas diversas bancas do local; com aquela quantidade e
variedade de testemunhas, mais não havia que ser pesquisado nessa linha. Estiveram
sempre juntos, não deram mostras de eventual separação, ainda que temporária.
Depois, passei pela Mogyana; conversei
alguns minutos com o Chefe da Estação, um sujeito moreno e bem alto, cara fina
e de óculos escuros, testa alta e cabelo preto. Com o sorriso de costume, indicou-me
alguns operadores de tráfego que trabalharam no dia anterior, com os quais fui
conversar: vários notaram a presença do capataz, que partiu no domingo, no trem
das nove horas e quinze.
Os ladrilhos multicoloridos do piso
ainda podem ser vistos no amplo salão de entrada, onde ficam as bilheterias;
com predominância do vermelho e do amarelo, formam lindos e bem desenhados
mosaicos, que não cansam e nem embaralham a vista do observador. Inaugurada
pelo Imperador Pedro II, que aqui esteve juntamente com a Imperatriz e a
Princesa Isabel, em 1886, é uma linda estação, bem arejada e que tem amplitude bastante
para os tradicionais aglomerados de gente. É fim de linha, de quem vem de São
Paulo.
Ali eu pude confirmar que o nosso
viajante, o capataz, levou consigo, conforme vários me afirmaram, apenas uma
pequena valise de mão. Teve mesmo quem conversou com ele na plataforma de
embarque, pouco antes da partida, de modo que, ao menos em princípio, deveria
ser afastado da linha de investigação.
Na gare eu pude dialogar com o Senhor Popinga[1], enquanto
ele saboreava um portentoso charuto. Pessoa de boas posses e bem relacionado na
cidade, era belga de nascimento. De tempos para cá, sem maiores explicações, tinha
adquirido o hábito de passar horas a fio na estação, observando, no correr dos
dias, a movimentação das máquinas; diziam dele que talvez sonhasse em sair pelo
mundo afora, mas sobre isso ele nunca se permitiu conversar. O que foi dito
pelo homem que via os trens passarem, coincidia com as informações já colhidas
– sim, o capataz viajou mesmo no domingo de manhã, sem dúvida alguma.
Que lástima, pensei; continuamos na
estaca zero; até parece que as coisas não caminham adequadamente.
A dúvida continuava martelando minha
cabeça. Afinal, quem seria o assassino do Coronel Assis, pois, se bem no
horário da sua morte, todos estavam longe de casa? E, se não havia sinais da
entrada de alguém de fora, então quem seria o responsável por essa morte?
As suspeitas sobre a camareira e a cozinheira
foram descartadas de pronto, até por sugestão minha: no domingo mesmo eu já
havia dito ao Guilherme que nenhuma delas teria compleição física suficiente
para enfrentar o patrão; quando muito, só teriam chance de golpeá-lo enquanto
dormia.
Contudo, esta hipótese estava fora de
cogitação, porquanto a posição dos furos, a desarrumação do quarto e o sangue
escorrido pelo peito indicavam que o ataque tinha sido frontal, com a vítima em
pé perante o agressor.
Guilherme concordou com esse meu
raciocínio, o que me deixou satisfeito.
Isso, entretanto, não ajudava muita
coisa; é que, além da viagem misteriosa do capataz e da desocupação
inexplicável do casarão, também era de se acrescentar o roubo das esmeraldas.
Enfim, as dúvidas, ao invés de diminuírem, apenas mais e mais aumentavam.
Dos filhos do morto, havia menos ainda
do que suspeitar. Afora o que residia nos Estados Unidos, o outro, Assis
Júnior, mantinha excelente relacionamento com o pai. Tudo dentro dos padrões da
época.
Quanto ao que saíra do Brasil, tinha
sido contatado, no domingo de noite; não demonstrou grandes emoções, ao menos
que pudessem ser sentidas pela frieza da ligação telefônica. Consta que ele recebeu
a notícia da morte do pai sem maiores comentários, apenas agradecendo a
comunicação feita pelos policiais encarregados da diligência.
Enquanto eu fazia os trabalhos de
campo, o meu amigo Guilherme se encarregava das questões formais que envolviam
o caso: tratou logo cedo, na segunda-feira, de terminar o Boletim de
Ocorrência. Depois deu início à montagem do inquérito policial, ao qual foram juntadas
diversas fotografias do cadáver, algumas tiradas ainda no local da morte,
outras tiradas já no necrotério.
No horário das onze da manhã,
acompanhou o enterro, menos por pesar e mais por dever de ofício; bem podia ser
que um ou outro fato, durante as exéquias, pudesse lhe revelar alguma coisa de importante.
Ainda no cemitério, cuidou de marcar a
formalização dos depoimentos com os empregados da casa, todos para a parte da
tarde; ao invés do endereço da Delegacia, indicou, obviamente, o do meu escritório.
- É mais apropriado e discreto – me
explicou depois.
Assis Júnior combinou seu depoimento
para a terça-feira, o que foi aceito por Guilherme em respeito ao luto que a ocasião
exigia; seria ouvido no próprio casarão. Porém, em vista do que nos disse na
conversa de domingo, já sabíamos que nada mais de importante tinha a nos falar.
Do enterro, nenhum proveito tirou,
quer dizer, nada aconteceu de especial, que pudesse nos ajudar; no mais, muita
gente acompanhando o féretro, o trivial, tal como esperado pela repercussão que
o caso teve.
Uma quantidade razoável de coroas de
flores se amontoava em torno do caixão. Muita gente engravatada se fez
presente, enquanto outras se fizeram representar. Houve discurso do Presidente
da Câmara Municipal; depois o Prefeito também falou, com muita pompa e energia,
com voz alta, empostada, eloquente:
- Em meu nome, em nome do Governador
do Estado e em nome de todo o nosso enlutado povo, que hoje fica mais triste
pela perda irreparável deste honesto e benfeitor cidadão, que com muita luta e
sem descanso sempre trabalhou pelo progresso da nossa cidade e da nossa região,
venho demonstrar nossa mais profunda tristeza. Amado e estimado Coronel Assis,
aqui estamos, com lágrimas nos olhos, inconsoláveis, para prestar esta justa e
sincera homenagem, que Vossa Excelência bem o merece...
O corpo do Coronel Assis repousa em
área nobre do Cemitério Municipal, sob uma magnífica capela, revestida de
mármore, que uma tal irmandade mandou construir como derradeira homenagem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário