Postagem em destaque

Sobre o Blog

Despretensiosos e singelos: é assim que vejo minhas crônicas e meus contos. As crônicas retratam pedaços da minha vida; ora são partes da ...

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Livro - Reverso inclinado. Capítulo 9. Checando álibis

Checando álibis

A segunda-feira de manhã foi tirada para a confirmação dos álibis e das informações obtidas no dia anterior; a chuva ainda continuava a cair, embora mais fina; não tínhamos como dispensar botas e guarda-chuvas. A neblina amanheceu cerrada, o vento constante e muito gelado obrigava o uso de blusas grossas. Normalmente essas intempéries permanecem durante muitos dias seguidos, são características das Águas Virtuosas.

Passei pelas bancas de jornais e, como eu já esperava, nem uma palavra sequer sobre o assassinato. Sim, a morte foi manchete nos dois jornais locais, mas nenhuma das notícias falava em crime; o leitor menos avisado entenderia que o Coronel Assis teria morrido de morte natural. O silêncio dos jornalistas dizia muito sobre as influências do morto e, por extensão, da sua família.
Fui ter ao Mercado Municipal, que ficava na avenida principal, numa esquina logo depois do prédio da prefeitura; calculei que dez minutos, no máximo quinze, a passos lentos, seriam suficientes para se alcançar o Mercadão, como carinhosamente é chamado, a partir da casa do Coronel Assis.
Ouvi de vários e conhecidos comerciantes que, realmente, os empregados do Coronel estiveram ali no domingo, fazendo compras diversas e demoradas. O que mais chamou a atenção deles foi o fato de que raras vezes eram vistos no local.
- Sempre é o capataz que vem por aqui, aos sábados. Mas, quando, mais tarde, a notícia do assassinato se espalhou pela cidade, logo pensei que o criminoso tinha se aproveitado justamente da ocasião em que o morto ficara sozinho no casarão. Lógico, assim ele cometeu o crime com mais facilidade e sem testemunhas – disse-me um vendedor de tomates.
Mas não faziam a menor ideia de quem poderia ter sido o homicida. Nada podiam acrescentar sobre isso.
E ninguém lançou qualquer suspeita sobre os empregados. Antes pelo contrário, muitos foram os elogios que receberam; sabiam que o Coronel era severo e não admitia liberdades, por isso ostentavam comportamento exemplar. Eu mesmo não esperava qualquer informação diferente daquela, pois já sabia que trabalhavam há muitos anos no casarão; portanto, eram plenamente conhecidos da família e nunca houve fato que pudesse ser lançado contra qualquer um deles.
Enfim, cozinheira, camareira e caseiro estiveram, todos, pelas diversas bancas do local; com aquela quantidade e variedade de testemunhas, mais não havia que ser pesquisado nessa linha. Estiveram sempre juntos, não deram mostras de eventual separação, ainda que temporária.
Depois, passei pela Mogyana; conversei alguns minutos com o Chefe da Estação, um sujeito moreno e bem alto, cara fina e de óculos escuros, testa alta e cabelo preto. Com o sorriso de costume, indicou-me alguns operadores de tráfego que trabalharam no dia anterior, com os quais fui conversar: vários notaram a presença do capataz, que partiu no domingo, no trem das nove horas e quinze.
Os ladrilhos multicoloridos do piso ainda podem ser vistos no amplo salão de entrada, onde ficam as bilheterias; com predominância do vermelho e do amarelo, formam lindos e bem desenhados mosaicos, que não cansam e nem embaralham a vista do observador. Inaugurada pelo Imperador Pedro II, que aqui esteve juntamente com a Imperatriz e a Princesa Isabel, em 1886, é uma linda estação, bem arejada e que tem amplitude bastante para os tradicionais aglomerados de gente. É fim de linha, de quem vem de São Paulo.
Ali eu pude confirmar que o nosso viajante, o capataz, levou consigo, conforme vários me afirmaram, apenas uma pequena valise de mão. Teve mesmo quem conversou com ele na plataforma de embarque, pouco antes da partida, de modo que, ao menos em princípio, deveria ser afastado da linha de investigação.
Na gare eu pude dialogar com o Senhor Popinga[1], enquanto ele saboreava um portentoso charuto. Pessoa de boas posses e bem relacionado na cidade, era belga de nascimento. De tempos para cá, sem maiores explicações, tinha adquirido o hábito de passar horas a fio na estação, observando, no correr dos dias, a movimentação das máquinas; diziam dele que talvez sonhasse em sair pelo mundo afora, mas sobre isso ele nunca se permitiu conversar. O que foi dito pelo homem que via os trens passarem, coincidia com as informações já colhidas – sim, o capataz viajou mesmo no domingo de manhã, sem dúvida alguma.
Que lástima, pensei; continuamos na estaca zero; até parece que as coisas não caminham adequadamente.
A dúvida continuava martelando minha cabeça. Afinal, quem seria o assassino do Coronel Assis, pois, se bem no horário da sua morte, todos estavam longe de casa? E, se não havia sinais da entrada de alguém de fora, então quem seria o responsável por essa morte?
As suspeitas sobre a camareira e a cozinheira foram descartadas de pronto, até por sugestão minha: no domingo mesmo eu já havia dito ao Guilherme que nenhuma delas teria compleição física suficiente para enfrentar o patrão; quando muito, só teriam chance de golpeá-lo enquanto dormia.
Contudo, esta hipótese estava fora de cogitação, porquanto a posição dos furos, a desarrumação do quarto e o sangue escorrido pelo peito indicavam que o ataque tinha sido frontal, com a vítima em pé perante o agressor.
Guilherme concordou com esse meu raciocínio, o que me deixou satisfeito.
Isso, entretanto, não ajudava muita coisa; é que, além da viagem misteriosa do capataz e da desocupação inexplicável do casarão, também era de se acrescentar o roubo das esmeraldas. Enfim, as dúvidas, ao invés de diminuírem, apenas mais e mais aumentavam.
Dos filhos do morto, havia menos ainda do que suspeitar. Afora o que residia nos Estados Unidos, o outro, Assis Júnior, mantinha excelente relacionamento com o pai. Tudo dentro dos padrões da época.
Quanto ao que saíra do Brasil, tinha sido contatado, no domingo de noite; não demonstrou grandes emoções, ao menos que pudessem ser sentidas pela frieza da ligação telefônica. Consta que ele recebeu a notícia da morte do pai sem maiores comentários, apenas agradecendo a comunicação feita pelos policiais encarregados da diligência.
Enquanto eu fazia os trabalhos de campo, o meu amigo Guilherme se encarregava das questões formais que envolviam o caso: tratou logo cedo, na segunda-feira, de terminar o Boletim de Ocorrência. Depois deu início à montagem do inquérito policial, ao qual foram juntadas diversas fotografias do cadáver, algumas tiradas ainda no local da morte, outras tiradas já no necrotério.
No horário das onze da manhã, acompanhou o enterro, menos por pesar e mais por dever de ofício; bem podia ser que um ou outro fato, durante as exéquias, pudesse lhe revelar alguma coisa de importante.
Ainda no cemitério, cuidou de marcar a formalização dos depoimentos com os empregados da casa, todos para a parte da tarde; ao invés do endereço da Delegacia, indicou, obviamente, o do meu escritório.
- É mais apropriado e discreto – me explicou depois.
Assis Júnior combinou seu depoimento para a terça-feira, o que foi aceito por Guilherme em respeito ao luto que a ocasião exigia; seria ouvido no próprio casarão. Porém, em vista do que nos disse na conversa de domingo, já sabíamos que nada mais de importante tinha a nos falar.
Do enterro, nenhum proveito tirou, quer dizer, nada aconteceu de especial, que pudesse nos ajudar; no mais, muita gente acompanhando o féretro, o trivial, tal como esperado pela repercussão que o caso teve.
Uma quantidade razoável de coroas de flores se amontoava em torno do caixão. Muita gente engravatada se fez presente, enquanto outras se fizeram representar. Houve discurso do Presidente da Câmara Municipal; depois o Prefeito também falou, com muita pompa e energia, com voz alta, empostada, eloquente:
- Em meu nome, em nome do Governador do Estado e em nome de todo o nosso enlutado povo, que hoje fica mais triste pela perda irreparável deste honesto e benfeitor cidadão, que com muita luta e sem descanso sempre trabalhou pelo progresso da nossa cidade e da nossa região, venho demonstrar nossa mais profunda tristeza. Amado e estimado Coronel Assis, aqui estamos, com lágrimas nos olhos, inconsoláveis, para prestar esta justa e sincera homenagem, que Vossa Excelência bem o merece...
O corpo do Coronel Assis repousa em área nobre do Cemitério Municipal, sob uma magnífica capela, revestida de mármore, que uma tal irmandade mandou construir como derradeira homenagem.



[1] Personagem do livro O homem que via o trem passar, do grande e profícuo Georges Simenon.

Nenhum comentário:

Postar um comentário