O júri absolve o caseiro
O caso esfriou com o passar do tempo. Guilherme
esteve no norte da Europa, em 1972, a passeio. Desgostoso com os seus fazeres,
aproveitou uns meses acumulados de licença-prêmio e as economias de uma vida
toda para empreender a viagem.
Realizou o sonho que acalentava desde
a juventude: conhecer uma capital europeia, de noites brancas, em que o sol praticamente
não se põe. Mesmo como turista, não deixou de usar seus dotes profissionais para
se imiscuir, mesmo sem ser convidado oficialmente, numa sigilosa investigação
internacional que envolvia gente graúda do mundo enxadrístico, na cidade de
Reikjavík. Nunca me deu maiores detalhes do papel que desempenhou naquela
ocasião; o que sei é um norte-americano, desafiante do título mundial de xadrez,
esteve sob ameaça de agentes da polícia secreta da União Soviética. Assustado,
o enxadrista norte-americano desapareceu misteriosamente da capital islandesa,
colocando em risco a realização do match
mais esperado de todos os tempos. Ao que parece, os soviéticos não aceitariam
de bom grado a entrega do cetro, que detinham por cinquenta anos, aos
americanos.
O início da disputa chegou a ser
adiado pelas ferrenhas disputas que aconteceram fora do tabuleiro. A Guerra Fria
esquentou também a guerra de reis, damas e peões.
Na ausência do meu amigo, dediquei-me
inteiramente aos processos; a economia do país estava sob os fluxos de bons
ventos, graças à enxurrada de dólares que os americanos mandavam para cá, e
esse fato propiciava bom movimento no meu escritório.
Guilherme voltou radiante; os ares
europeus lhe fizeram bem. Estava feliz por ter colaborado com a solução do enigma
que envolveu o mundo da Arte de Caíssa. Mas essa é uma outra história, que
poderei contar em outra oportunidade, se o meu amigo me permitir e me der
maiores detalhes, claro. Mas, enfim, teve que retornar ao seu posto, na polícia;
e o fez contrariado, à espera de uma oportunidade de se desligar
definitivamente das investigações oficiais.
Passados três anos do assassinato do
Coronel, aconteceu o júri do caseiro. O tempo se encarregara de assentar os
ânimos e pouco se falava a respeito do crime
do casarão. O acusado responderia, em plenário, pelo assassinato e pelo roubo
das esmeraldas.
Depois acompanhar em liberdade o
desenrolar do processo, o réu compareceu ao Salão do Júri acompanhado do Dr.
Henrique, um jovem advogado que veio especialmente de Belo Horizonte para os trabalhos
de defesa; especializado em direito penal e humanista convicto, esse advogado era
gaitista nas horas vagas.
O Dr. Henrique exibia um rosto com
sombras de barba cerrada, mas cuidadosamente escanhoada. Visto de perfil, mais
lembrava uma escultura grega; era tido pelas moças casadoiras como moço bonito
e bem apessoado e delas arrancava suspiros. Diziam que ele ficaria muito bem na
capa da revista Intervalo, que era sucesso de público na época; era mais apresentável,
inclusive, do que alguns galãs da televisão – quem sabe até se não arranjaria
uma linda, sorridente e roxa morena para com ela se casar? Quem sabe?
Aliás, depois soubemos, foi ele quem
socorreu o caseiro, quando da sua prisão temporária: procurado pelos familiares
do acusado e condoído com aquela situação, pediu ordem de soltura no tribunal e
o tirou da injusta e apressada prisão. Não veio contratado particularmente, mas
na condição de voluntário, graciosamente, pois o réu não tinha reservas
financeiras para lhe pagar os merecidos honorários.
Por sinal, um dos argumentos do
advogado foi justamente este: como é que o acusado teria cometido o crime de
homicídio para, depois, roubar as pedras preciosas, de altíssimo valor
comercial, se ele se encontrava em difícil situação financeira, mais precária
ainda do que antes do assassinato? Que sentido faria roubar as gemas se depois
cair em estado de quase miserabilidade?
Sim, porque durante os tempos em que
trabalhara no casarão ele teve roupa limpa, comida à vontade, pouso, enfim,
ainda que ganhasse pouco, levava uma vida tranquila e sossegada, tal como os
demais que por ali viviam. Se é certo que não enriqueceria dentro da sua
profissão, de outro lado também é certo que nos seus afazeres não passaria
necessidades e, portanto, jamais seria obrigado a se alojar em ambientes tão precários
como aqueles em que passou a viver depois da morte do patrão.
Assis Júnior, como já sabemos, despediu-o
tão logo o inquérito policial foi concluído; nesse sentido, o relatório do delegado,
apontando a sua responsabilidade penal no caso, foi decisivo para a demissão
sumária. O filho do Coronel foi impiedoso; demitiu-o sem indenização alguma, o
que lhe rendeu, consequentemente, muitas dificuldades. Ao contrário da cozinheira
e da camareira, que continuaram abrigadas no casarão, o infeliz do caseiro foi viver
em casa de parentes e de amigos, que se sentiram consternados com a sua
situação de penúria. Custou para que conseguisse, após um longo tempo, o
emprego de faxineiro num pequeno hotel da estância. Andava a pé, nem ônibus
tomava. Esses aspectos foram muito bem abordados pelo jovem criminalista:
- Ora, Excelentíssimos Senhores Jurados!
Esse cidadão jamais poderia ter assassinado o patrão e dele ter roubado as
esmeraldas; e isso por uma razão muito simples: se assim tivesse feito, jamais
ele estaria sobrevivendo neste estado de necessidade em que hoje se encontra!
Por certo, se ele fosse o culpado, é claro que estaria morando em alguma outra
cidade, longe daqui, colhendo os frutos do seu ato criminoso. Mas não, Excelentíssimos
Jurados, aqui está ele, maltrapilho e maltratado; aqui está ele, malquisto e
malbarato perante a nossa sociedade. Aqui está ele, vejam com seus próprios
olhos, em situação desoladora, situação essa que não é condizente com quem
teria roubado milhões e milhões em pedras preciosas!
Antes dessa peroração, o Dr. Henrique
já tinha desmontado todas as teses da acusação, com especial cuidado e com
riqueza de detalhes: como o rapaz poderia ter cometido o assassinato se na hora
do crime ele foi visto, juntamente com os seus colegas de trabalho, fazendo
compras no Mercado Municipal?
- Teria ele o dom da ubiquidade, Excelentíssimos
Senhores Jurados? Quero dizer, poderia ele aparecer em dois locais distintos e
distantes um do outro, tudo ao mesmo tempo?
E ele mesmo respondia, sempre em voz
alta, pausada e clara:
- Obviamente que não, nada disso seria
sensato! Ademais, nos autos ficou cabalmente provado que ele saiu do casarão
junto com os colegas; depois, ali voltou, sempre em companhia dos demais empregados
do casarão. Todos os empregados, literalmente todos eles, repito, estavam fora do
local quando o crime ocorreu, de acordo com a melhor prova dos autos, meus
senhores.
Dr. Henrique também falou da ausência
da arma do crime, afirmando, com todas as letras, que as autoridades foram
incapazes de localizá-las.
- Infelizmente a arma não foi
localizada; acaso tivessem tido a capacidade de encontrá-la, decerto ali
estariam impressas as digitais do verdadeiro assassino; e isso, Excelências, nos
daria a plena e total segurança para a condenação necessária. Mas, infelizmente,
eu dizia, nem a arma do crime foi encontrada. Em outras palavras, não há
qualquer tipo de prova que possa levar à condenação do réu aqui presente, muito
pelo contrário...
E acrescentou:
- Aqui, em nossa presença, agora há
pouco falou o Dr. Kumagai[1],
perito que examinou o local do crime e o corpo do Coronel Assis; é certo que o
local do crime ele vistoriou apenas um dia depois do assassinato, mas ele foi
bem claro: “a arma que matou o Coronel Assis é uma faca, provavelmente de
cozinha, mas nunca me foi exibida para perícia”.
Elegante, como depois disso veio a dar
várias provas, o Dr. Henrique jamais acusou o capataz; soube, com maestria,
defender o seu cliente sem desviar a responsabilidade para qualquer outra
pessoa em especial – por óbvio, nem seria ético de sua parte fazer diferente
disso.
Por mais que o promotor do caso
insistisse na condenação, não houve jeito; o veredito final foi inquestionável:
absolvição do acusado por unanimidade, sem margens para qualquer tipo de
contestação.
Foi um resultado que não agradou as autoridades
locais e nem os amigos do morto. Presente na plateia, o filho ensaiou uma vaia
quando do anúncio da votação, logo rechaçada com firmeza pelo magistrado. Neste
gesto ele não foi seguido pelos populares, que lotavam o recinto; ao que
parece, ninguém mesmo acreditava na culpabilidade do caseiro.
Guilherme, enquanto nos preparávamos
para sair do Salão do Júri, discretamente me confidenciou:
- Pois é, bem que eu disse, por
ocasião do encerramento do inquérito: não há provas suficientes para a
condenação do caseiro. Mas o homem insistiu, não é? Poderia muito bem ter
ficado sem essa; agora, o azar é dele. Ele que se explique em Belo Horizonte.
Disse-me isso porque, no lado oposto
do salão, encostado na parede, estava justamente o delegado. Estava sozinho, de
cabeça baixa, ouvindo as últimas palavras do juiz; sempre quieto, não disse
qualquer palavra e nem esboçou qualquer gesto, mas sua expressão era de
completo desânimo: afinal, com uma derrota desta magnitude, teria muitas
dificuldades para se explicar para os superiores.
Esse caso tinha tudo para entrar no
rol daqueles tantos que se perpetuam sem a solução adequada – ou, como querem
alguns, tem tudo para ser classificado como crime
perfeito.
Quanto ao acusado, este se limitou a
abraçar o jovem advogado; seu rosto nada demonstrava senão o cansaço que a vida
lhe impôs nestes últimos tempos. Nem triste e nem feliz, saiu sozinho pelas
ruas da cidade, como que sem destino aparente.
O que dele se sabe é que, encerrado o
processo, continuou trabalhando no mesmo hotel, faxinando quartos e corredores;
conseguiu, inclusive, um quarto nos fundos, onde passou a morar juntamente com
outros funcionários da limpeza.
Enfim, por essas agruras todas que o
levaram a uma vida difícil e sofrida é que, o Guilherme e eu, acabamos por
concluir que os jurados estavam cobertos de razão: não havia mesmo como imputar
ao caseiro os crimes de homicídio e de roubo das esmeraldas.
Mas, e quanto aos crimes do casarão?
Bem, nesse particular, nossas dúvidas ainda permaneciam sem respostas.
Algumas semanas depois do júri, o Dr. Alberto
foi transferido para o norte do Estado. Não sabemos se foi a requerimento
próprio ou por decisão superior. Não deu explicações e nem se despediu dos colegas
de trabalho.
De acordo com quem o viu partir, levava
no semblante uma enorme e indisfarçável carga de decepções. E nunca ouvimos
falar dele.
[1]É
o perito do thriller policial Acima de qualquer suspeita, de Scott
Turow; ele comete um erro crasso ao não analisar as digitais que estavam num
copo manuseado pelo pretenso assassino e, com isso, altera os rumos do
julgamento.
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